O INVentário da Fresno e a arte pela arte

Projeto experimenta novos formatos e sonoridades e deixa as músicas falarem por si só

Foto: Camila Cornelsen Arte: Giovanna Zancope / Downstage

Num momento em que os shows ao vivo ainda parecem estar muito além do horizonte e tudo o que resta para um artista entrar no hype são algoritmos determinados por plataformas de streaming musicais, ousados são aqueles que optam por fazer arte pela arte. Com mais de duas décadas de estrada e cada álbum em sua discografia carregando uma Era com conceitos diferentes, a Fresno escolhe voltar para dentro de si e rememorar o que tornou a banda um dos maiores nomes do rock nacional no novo projeto, INVentário.

Num ato tão simbólico e significativo como abrir um armário de antigas lembranças, Lucas Silveira, Gustavo Mantovani e Thiago Guerra reuniram-se para juntar todos os trabalhos inacabados ou que por algum motivo não foram lançados durante tantos anos em atividade. O que era pra ser apenas uma coletânea de músicas jamais divididas com o público, acabou tornando-se uma mistura repleta de coisas novas, feats aguardados pelos fãs e sonoridades inusitadas — tudo isso partindo de um simples questionamento: por quê não fazer isso agora?

Não é equivocado dizer que a Fresno abre as portas para seu mais ousado projeto de carreira. Descrito pelo próprio vocalista como uma forma de “celebrar o que tinha guardado”, a banda se vê criativamente livre para dividir com os fãs todos os limites que a imaginação e a música são capazes de extrapolar. “É uma celebração do que pode vir a ser a doideira, de não pensar muito; de uma liberdade que a gente tem porque simplesmente pode”, comenta Lucas Silveira em entrevista exclusiva ao Downstage.

(Imagem: Camila Cornelsen)

Conhecida por seus conceitos pensados nos mínimos detalhes, a Fresno agora coloca a vontade de apenas dividir alguns trabalhos com o mundo acima de qualquer número, algoritmo ou significado por trás de tudo. “Fazer sem pensar muito é o que governa a escolha, a ordem e tudo o que tem no INVentário”, relata o músico, referindo-se à ideia que partiu inicialmente de Guerra. “Um dia a gente sentou e viu tudo o que tínhamos começado, ideias… e terminamos todas elas ‘pra que a gente não tenha mais nada no armário’ — esse olhar é muito louco, a gente fica com coisas guardadas esperando o momento certo, e aí você acaba não fazendo novas.”

Mesmo diferente de tudo o que a banda realizou até agora, INVentário não foi pensado para ser visto como um Lado B. Todas as faixas presentes no projeto possuem uma enorme importância para a carreira da Fresno. “Não são ‘umas demo’, até o que era demo a gente se preocupou em finalizar como se fosse pra um álbum, mixado, masterizado. Se o fã quiser tratar aquilo como álbum ele pode”, complementa.

A questão principal e que carrega todo o projeto é justamente mergulhar de cabeça nesse universo criativo e sem limites do trio. INV001: 12 WORDS 30000 STONES foi lançada no dia 30 de agosto, flertando diretamente com o metalcore e trazendo os vocais de Lucas Silveira e Arthur Mutanen (do Bullet Bane) além da produção de Chediak e adieu.

Na mesma semana, INV 002: O SONHO É A SENHA E INV003: SAFC REMIX também chegaram ao público. A primeira sendo o terceiro ato de uma canção que originalmente possuía dez minutos e quando repartida, foi utilizada em diferentes trabalhos: com o primeiro trecho tornando-se o single Natureza Caos e o segundo utilizado na abertura da turnê de mesmo nome. “As vozes dos gêmeos Keops e Raony [do Medulla] e os também gêmeos do 2STRANGE estão gravadas há anos e seria impossível não finalizar essa epopeia e mostrar pra vocês”, escreveu Lucas Silveira nas redes sociais na data de lançamento da faixa.

SAFC REMIX traz uma releitura de Twin Pumpkin da faixa que dá título ao último álbum da Fresno. A canção mescla-se às outras duas anteriores ao ser ouvida em continuidade e traz uma analogia com a forma que a pandemia interrompeu a turnê Sua Alegria Foi Cancelada, bem como toda a Era, da forma que é encerrada abruptamente.

Seu fim, no entanto, abre espaço para duas faixas sem feats, mas ainda assim muito marcantes na carreira de Lucas Silveira: 6h34, canção que fez enorme sucesso com o projeto paralelo Visconde, e Ontem Foi Difícil, lançada no ano passado dentro do EP Ls Piano 01, cuja versão final teve os vocais retirados.

Capa de 6h34 (Imagem: Divulgação)

“Tem muito material que a gente começa a fazer e pensar em momentos e porquês [para lançá-los]”, explica o compositor. “Só que o tempo às vezes ocorre de maneira diferente e a gente acaba não fazendo as coisas. Isso vai somando dentro da nossa cabeça, e um monte de coisa que poderia estar na rua, as pessoas poderiam estar ouvindo, comentando, gostando […] vai fazer muito mais gente feliz fora do nosso HD do que dentro dele.”

“Quando você segura as coisas, mais obcecado você vai ficando com a hora perfeita”, admite o vocalista. “Aí você vai ver e todos os grandes hits um dia a pessoa falou ‘lança logo!’. Até de músicas nossas, que surgiram por último no álbum, quando fomos ver foram as que a galera mais se identificou.”

Visconde e o escapismo criativo da Fresno

Não é novidade para os fãs que o projeto paralelo de Lucas Silveira, Visconde, surgiu num momento de revolta com uma antiga gravadora em que foi necessário para o músico criar um escapismo criativo para ser livre na hora de produzir. 

“A grande cagada de artista é entrar na noia de que só é bom quando dá muito trabalho”, comenta o cantor. “Isso vai glamurizando a dificuldade […] as pessoas tendem a ligar a sofrimento, eu basicamente só escrevo sobre sofrimento mas nem sempre é difícil fazer. Talvez por deixar esse filtro aberto sai muito rápido.”

(Imagem: Reprodução / Dark Matter Music)

“As músicas do Visconde tinham uma lei: elas só eram do projeto se eu sentasse, mixasse e lançasse numa sentada só. Essa mentalidade me fazia refletir demais e ser mais sincero, e isso eu levei pra sempre”, complementa o músico sobre seu processo criativo para o projeto que, uma hora, acabou se tornando uma espécie de autossabotagem. “Hoje eu aprendi que eu não preciso mais pensar que tô fazendo música pro Visconde pra que ela fique sincera. O que vier na minha cabeça eu vou cantar.”

Pensando nisso, Lucas Silveira reflete sobre o INV004 e INV005, que foram lançadas de uma só vez. Enquanto 6h34 é um dos maiores sucessos do Visconde e tinha sido disponibilizada exclusivamente no soundcloud, Ontem Foi Difícil surgiu de uma live na Twitch. “Quando eu pensei no INVentário, fui ouvir essa música de novo e abri a voz, e talvez ela estivesse esperando eu lançá-la como Fresno”, revela.

6h34, uma queridinha dos fãs, sempre foi reservada para um possível formato acústico da banda. “Sei lá quando a gente vai fazer esse acústico”, brinca o cantor. “Essa música foi ficando velha e foi ficando nessa versão do Visconde, então eu falei para os caras: ‘vamos gravar logo! Vamos fazer ela do jeito que era pra ter sido feita há muito tempo’ […] às vezes o Visconde virava uma autossabotagem pra mim, quando eu fazia músicas com uma liberdade extrema sem pensar em nada e essa leveza no processo de composição me permitia ser mais esperto e mais imprevisível.” 

(Imagem: Reprodução / Instagram)

Lucas relembra que, inclusive, essa não é a primeira vez que uma música inicialmente pensada para o Visconde acaba tornando-se da Fresno: O Resto é Nada Mais (O Sonho de um Visconde) e O Arrocha Mais Triste do Mundo, que passaram a integrar os álbuns Infinito e sua alegria foi cancelada, respectivamente.

“Se eu pensar toda vez que vou compor que isso vai ser um negócio do Visconde, aí sim tá errado”, complementa. “Se eu pensei assim é porque ela é mais livre, diferente —  e uma banda com a nossa estrada faz muito bem em ser diferente.”

O formato mixtape e o peso do isolamento social

“Pra audiência pouco importa do que eu estou chamando aquilo”, começa Lucas Silveira quando questionado sobre o formato de mixtape, descrito por ele mesmo como “uma colagem de músicas que podem ou não seguir algum critério”, referindo-se à ordem que são lançadas, por exemplo.

“O critério não precisa ser tão óbvio”, conta o músico. “Cabe a gente mostrar pro fã e pra quem acompanha o nosso trabalho coisas sem tanta reflexão, que é normalmente o que a gente tem num álbum, ‘essa música fica, essa música sai’ — na mixtape a gente pensa como um apanhado, um mural de coisas bonitas que a gente fez.”

Quanto ao modelo de lançamento, como dividir as faixas com o público em dias alternados e nesta terça-feira (7) liberar duas de uma vez, a Fresno parte para uma decisão desprendida de algoritmos e número de reproduções nas plataformas digitais. “Percebo que os artistas estão seguindo como estratégia de lançamento coisas que uma firma fala, não uma gravadora”, revela. “Isso tira boa parte do lado criativo de um lançamento; tem vários jeitos de lançar um disco, mas vários artistas não lançam de um jeito maluco por causa do algoritmo e vai ficando sem graça esse mundo.”

Silveira até relembra o formato de lançamento adotado para o último disco da Fresno, o sua alegria foi cancelada, cuja Era foi inteiramente trabalhada numa só cor e conceito que transbordava para o material audiovisual, redes sociais e até mesmo campanha promocional offline da banda. “Na época foi uma novidade principalmente entre as bandas de rock, revolucionário pra nossa galera”, comenta. “Hoje já estão entendendo que um lançamento de álbum é algo muito sério. Você investe um ano fazendo o bagulho e às vezes isso vai te render algumas semanas de bafafá, mas a galera esquece.”

(Imagem: Camila Cornelsen)

Muito desse comportamento possui o peso da pandemia, visto que os desdobramentos fora do mundo virtual no lançamento de um disco estão impossibilitados de aconteceram justamente a fim de evitar aglomerações.

Esse assunto foi visitado em março pelo próprio Lucas Silveira no Twitter, ao responder um fã sobre o possível lançamento de um álbum. “Cada show que tu faz, são X pessoas comprando ingresso, mobilizando, decorando as novas [músicas], adquirindo merch, falando pros amigos, indo ao show e lá fazendo fotos, stories, e ouvindo mais tua música depois do show”, escreveu o músico.

“Quando você vai ver no Spotify, tem um pico e depois os plays caem”, referiu-se ao lançamento de grandes nomes do pop no ano de 2020. “Se o artista consegue ter muitos plays é porque ele é encaixado em playlists, mas aí de novo: você tá deixando uma empresa de tecnologia governar o seu sucesso ou fracasso — que pra nós fere muito o que a gente acredita.”

Lançar faixas em dias alternados é uma maneira de manter as pessoas no hype, uma vez que desde o lançamento de INV002 os fãs esperam ansiosamente pela atualização da página da banda no Spotify, todos os dias, à meia-noite. “O mundo da música é muito livre e as pessoas estão acostumadas com um formato mais padrão”, relata.

INVentário “de fato não tem muito o que entender”, como adianta Lucas. A ideia é simples e procura valorizar a música por si só, a arte pela arte. “Todo mundo fica procurando um mega conceito por trás das coisas e esquece de ouvir a música”, finaliza.

(Imagem: Reprodução / Spotify)

Quantidade de faixas, teorias e afins

Ainda sob muito sigilo, o que pode-se adiantar sobre INVentário é que serão bastante faixas dentro do projeto. Quanto aos desdobramentos para o audiovisual e pensar em versões ao vivo, Lucas Silveira revela que nada foi pensado justamente porque isso “estaria limitando a criatividade da banda”.

“Pensando ‘qual o single’, nós faríamos outra música, pensaríamos na duração, recepção… aí vai virando álbum. Se aquilo não tem nada em jogo, só as músicas, fica mais livre pra ser mais aleatório”, revela.

Em relação às teorias acerca das capas das faixas, a ideia sempre foi deixar a música falar por si só, e para isso foram utilizadas artes generativas para formular a identidade de cada uma das canções. “Você alimenta um programa com algoritmos e ele reage à música da maneira que for, gerando coisas imprevisíveis”, explica Lucas Silveira. “Cada música é como um computador enxerga ela, não é um ser humano pegando referências e transformando —  é uma máquina escolhendo cores conforme as frequências da música.”

A saída de Mario Camelo e o projeto INVentário

Com sua saída anunciada seis dias antes do lançamento da primeira faixa, o tecladista Mario Camelo encerrou sua passagem na Fresno de forma amigável e pacífica, com uma mensagem dedicada aos fãs e aos ex-integrantes. No entanto, a notícia foi dada a Lucas, Guerra e Vavo há meses atrás, porém a informação foi “segurada” justamente pensando na reação do público.

(Imagem: Reprodução / Instagram)

“Não tínhamos nada pronto, então seguramos a notícia para soltar perto de um momento melhor”, comentou Lucas Silveira. “A gente organizou essa ideia até pra ele continuar na Twitch com os fãs, e soltarmos essa notícia ruim perto de uma notícia boa.”

Pensando no INVentário, os fãs poderão ver um pedacinho de Mario em algumas faixas. “Justamente pelo projeto ser um apanhado, tem coisa dele sim”, revela o vocalista.

“Ele foi avisar cada um de nós, um por vez. Foi bem fofo da parte dele até pra gente entender como ele sairia da banda”, relembra Lucas. “Foi muito tranquilo.”