Waterparks e a materialização do espaço catártico de Intellectual Property
Disco traz temáticas pessoais como religião, autosabotagem e autoconhecimento de maneira única e com toda a essência familiar da banda
Dois anos após o lançamento do último álbum, Waterparks entra em uma nova era (muito maior do que apenas uma cor de cabelo nova do vocalista Awsten Knight), com Intellectual Property. O novo disco entrega um lado muito pessoal e íntimo da banda – mais do que os fãs haviam ouvido antes – com composições muito verdadeiras junto ao som familiar dos álbuns anteriores, porém, amadurecido, e trazendo referências novas.
Quando o assunto é a Waterparks, algumas características se tornaram assinatura da banda ao longo dos anos e de sua discografia: a experimentação presente nas músicas utilizando elementos de diferentes gêneros musicais; a ousadia das composições – que, muitas vezes, falam sobre os próprios fãs, a indústria musical e, até mesmo, sobre a própria gravadora, e a sensação de que Awsten Knight, Geoff Wigington e Otto Woods se divertiram muito produzindo cada disco.
Intellectual Property não foge do que já é esperado, agradando os fãs dos projetos anteriores – mas vai além. O lançamento traz uma nova camada de vulnerabilidade e sinceridade que, misturada com elementos novos na produção, faz com que o ouvinte consiga perceber e sentir a confiança com qual esse novo álbum foi criado.
A tracklist é composta por 11 músicas, cativando o ouvinte em 31 minutos. É o álbum mais curto da banda ao mesmo tempo que possui uma das narrativas mais sensíveis de toda a discografia, com inúmeras referências e menções religiosas expondo inseguranças e medos que o vocalista, Awsten Knight, sentiu ao longo da vida.
ST*RFUCKER abre o disco com um elemento característico da banda, mas que, neste álbum, é utilizado mais ainda. O uso do sampling em Intellectual Property é ainda mais dinâmico do que quando integrado nos projetos anteriores, efetivamente fazendo parte do conceito de cada track. Nessa introdução, especificamente, é utilizado junto da metalinguagem, com uma conversa de Awsten que referencia diretamente o começo da produção do disco.
Yo, imagine an album starting like this
Like, take a breath, close your eyes and shit
Após essa introdução falada, a escolha de um sintetizador que remete ao som de começo de sonho – utilizado principalmente em desenhos infantis – é muito bem colocada, quase como se o ouvinte estivesse fechando os olhos e imaginando como o álbum vai começar. Sintetizadores sempre foram muito presentes nas músicas da Waterparks e não foi diferente neste lançamento. Em ST*RFUCKER, a bateria é o instrumento mais predominante, por baixo das batidas eletrônicas e sintéticas que tomam conta da música.
Outro fator interessante dessa track é a escolha do título. Starfucker é um termo informal utilizado para pessoas que buscam incansavelmente interações, muitas vezes sexuais, com celebridades. Esse tema foi trazido à tona em outras músicas da banda, de trabalhos anteriores, como em FANDOM (2019) com I Miss Having Sex But At Least I Don’t Wanna Die Anymore e em Entertainment (2018), com TANTRUM.
A música acaba repentinamente, como se o sonho fosse cortado no meio. Então, Awsten volta a falar.
I’m saying picture that, but like, right before things go dark
REAL SUPER DARK vem em seguida, acompanhando a fala do vocalista na música anterior. O sampling é muito utilizado aqui também – tanto o de conversas entre os membros da banda, como trechos de televisão/rádio. A track é mais pesada, combinando com o título, um sentimento sombrio e intenso.
Essa track entrega bastante do emo e do pop punk que os fãs gostavam em Cluster, EP de 2016, mas com a pegada atual da banda. A guitarra é bem grossa, pesada, em alguns momentos distorcida, e combina com os vocais mais gritados do vocalista. O vocal traz dinamismo para a música, principalmente por conta dos momentos que Awsten diminui e desacelera o tom, quase cantando em suspiro, para voltar a intensidade de antes.
As menções aos fãs e ao próprio álbum aparecem novamente em REAL SUPER DARK. “My fans are the best, they’d love me more dead”, Awsten canta.
Um violão texturizado abre a terceira track. Consideravelmente mais calma e contida, FUNERAL GREY é uma love song fácil de ouvir, com uma melodia dançante e bem catchy. A ponte começa com um ótimo riff de guitarra e, ao todo, é divertida e bem produzida. Algo interessante de se notar é que Awsten introduz, mesmo que sutilmente, temas religiosos dentro das músicas. Em ST*RFUCKER, primeira track, ele canta: “Jesus Christ won’t text me back” e agora, em FUNERAL GREY, ele cita uma frase do interesse amoroso da track: “I know your dying wish is to be baptized in my spit”.
BRAINWASHED entra com a mesma pegada que a anterior, dessa vez com acordes dedilhados no violão. É uma track leve, com o ritmo da guitarra da introdução constante, no fundo, ao longo da música. A composição dessa track dá a impressão de que foi escrita por um adolescente, como se o vocalista estivesse na puberdade e estivesse assustado pelos sentimentos que estão aparecendo na medida que ele vai crescendo.
Don’t take it away, I wanna play, when did the time fly?
What if I pray? Hoping you’ll stay into the daylight
Awsten também canta: “Everything’s clean except for my thoughts, thinking about me getting you off” e, ao longo da música inteira, expressa o choque, o medo que sente de todos esses sentimentos “impuros” que está sentindo.
2 BEST FRIENDS traz a mesma sensação de juvenilidade, tanto pela letra quanto pela escolha da melodia e o uso dos sintetizadores. Um pop punk bem chiclete é relembrado nessa música com o ritmo da guitarra de fundo. É uma boa música, mas pode ser considerada apenas como uma filler – sem muitas grandes emoções, servindo para completar a tracklist.
A intensidade e emoção voltam na introdução da 6ª track, END OF THE WATER (FEEL). A introdução vem com uma melodia sintética reverberada, assim como os vocais mais emotivos, também reverberados. Uma guitarra distorcida entra junto com a mudança de ritmo após a intro, que dá mais energia para a música junto com a linha de baixo.
O ritmo da track alterna entre o energético e o emotivo entre os versos e os refrões, e isso torna a música bem cativante. Um dos pontos mais altos é o riff de guitarra explosivo que entra na transição entre o último refrão e a ponte, aparecendo de novo nos últimos versos. O comediante Kurtis Conner faz uma participação no final, com um sample de um de seus vídeos do Youtube.
Quando a tracklist é escutada por inteiro e a temática do álbum é esclarecida, quando Awsten canta: “if you feel it, then I feel it too. If you believe me, I could be your truth. If you feel it, then I feel it too. If you need me, all I need is you”, é possível que a intenção do vocalista tenha sido traçar um paralelo entre seu amor pelo seu interesse romântico com a devoção cega dos fiéis cristãos a Deus.
Uma das músicas mais catchy do disco é SELF-SABOTAGE, a 7ª track. A energia do refrão junto aos riffs vocais e a melodia tornam a música extremamente contagiante, tudo enquanto Awsten canta sobre deslocar a própria mandíbula para não ter que conversar com seu interesse amoroso. A habilidade da Waterparks de escrever músicas tristes, pesadas e até mesmo perturbadoras, contrastando com um ritmo completamente animado e dançante – e fazer funcionar – é uma das características mais fortes da banda.
O ouvinte chega no ápice da temática religiosa em RITUAL.
What if I want to have sex before I get married?
Well, I guess you just have to be prepared to die
A introdução é um sample de um programa de educação sexual na Pensilvânia, servindo para ambientalizar e preparar o ouvinte para o resto da track. RITUAL é, facilmente, uma das músicas mais pesadas de toda a discografia da Waterparks – tanto no ritmo, com uso de sintetizadores pesados e efeitos de som sombrios e assustadores, quanto pelo teor da letra.
É possível que, nessa música, Awsten esteja comparando sua infância religiosa com um ritual – ato cujo religiões cristãs/evangélicas consideram como algo satânico – considerando que a progressão da letra é quase que uma rotina, acontecimentos seguidos de outros que são repetidos ao longo de toda a track como se fossem afazeres durante o dia. E, após essa “rotina”, ele termina o refrão desabafando: “you’re killing me, when I’m fast asleep, like a ritual.”
A track é uma mistura de diferentes influências musicais, o metal e os vocais gritados do Awsten misturados com o sintético e eletrônico. No último verso, Awsten traz a letra em forma de rap, com um registro mais baixo da voz. RITUAL é uma das melhores do disco, trazendo tanto o talento da banda na produção e na versatilidade, quanto o sentimento, a honestidade, sobre um assunto tão sensível.
O ritmo diminui com FUCK ABOUT IT. Um fato interessante sobre essa música é que é o primeiro feat do Waterparks em todos os seus álbuns, com uma participação de blackbear. A track começa com violão e Awsten desabafando sobre uma relação exaustiva e chegando no seu limite. O feat com blackbear entra muito bem nessa música, trazendo um fator diferente, um dinamismo maior para o ritmo mais sóbrio.
A conexão entre essa track e a 4ª é de se destacar também. Em BRAINWASHED, Awsten canta na perspectiva de alguém obcecado por outra pessoa. “It’s been a week, I’m still at your house” / “Thinking about me getting you off”. Já em FUCK ABOUT IT, é o outro lado da moeda. blackbear reclama: “You’ve been at my crib for like the seventh day up in a row” e Awsten complementa no refrão: “We can fuck about it later, if you want, it’s all we ever really do when something’s wrong”.
Em seguida, CLOSER encaminha o ouvinte para a reta final e é a mais melódica do disco, parecendo ser uma continuação à anterior. FUCK ABOUT IT pede espaço para a pessoa na qual ele está se envolvendo, mesmo gostando dela. Em CLOSER, esse espaço é concedido – mas a que custo?
I got my space, but what did I pay for you?
A track também traça alguns paralelos ao álbum Entertainment. Na ponte, Awsten canta: “you’re the holiday I celebrate too late”, e, em Lucky People, do Entertainment, ele canta: “happy birthday, Merry Christmas, to the one I call my missus”. E não é a única conexão – Awsten vem logo em seguida com: “you’re the eyes I gave up tryin’ to captivate” e, em 11:11, também do álbum de 2018, ele canta: “my favorite time to stare is when my eyes are on you”.
CLOSER é uma música emotiva e os instrumentos e ritmo acompanham a letra e o vocal, uma balada sobre se desapaixonar de uma pessoa. A mudança de presente para passado dos primeiros versos para os últimos é bem especial (e bem triste). Ela cabe bem nesse momento do álbum, sendo a penúltima música, desacelerando e antecipando para o final.
Ao chegar à última track, o ouvinte se depara com uma música que amarra toda a história e narrativa do disco e traz o ápice da confiança que vai sendo construída e desenvolvida até ali. A NIGHT OUT ON EARTH finaliza o álbum com uma batida pesada, porém sintetizadores mais puxados pro eletrônico pop e vocais mais rápidos. É uma música que entrega muito das qualidades da banda que os fãs estão acostumados, puxando até um pouco do álbum anterior, Greatest Hits.
Nessa track, eles escolhem utilizar bastante da chamada e resposta também, com falas após alguns versos – ferramenta que a banda utiliza bastante no geral. Outra característica da música é a presença, novamente, da metalinguagem, cantando sobre transformar seus sentimentos em letras de músicas.
A NIGHT OUT ON EARTH apresenta uma versão assumida, descarada e sem remorsos do Awsten. Os seus questionamentos internos ainda estão ali – “I kissed a couple people in a week, am I gonna go to hell in my sleep? Or will God forgive me?”, mas a percepção que ele traz nessa música é que “só apenas mais uma noite na Terra”, ou seja, conformação e entendimento de que as coisas são assim mesmo. É a realização, o ponto mais alto, do sentimento catártico que foi sendo impulsionado até aqui.
A música finaliza com os instrumentos desacelerando, antecipando para o final, quase como se fosse o final de um show, sinalizando para o encerramento do ato. E, após o fim do vocal, a track acaba com um sample de uma das primeiras entrevistas de rádio da Waterparks com Mike Fish, terminando com uma frase muito significativa, principalmente considerando que Awsten Knight afirma que Intellectual Property é o disco essencial da banda.
Once again, this is Waterparks
A Waterparks provou, inúmeras vezes, ser uma banda autêntica e habilidosa para experimentar coisas novas em seus trabalhos e fazer isso muito bem toda vez. Além disso, é possível perceber a capacidade que eles têm de amadurecer e desenvolver suas assinaturas já familiares de som e estilo.
Com Intellectual Property não foi diferente. Porém, a combinação de todas essas qualidades junto a um conceito elaborado e pessoal que consegue trazer assuntos íntimos e difíceis de serem falados de uma maneira cativante, envolvente, e, por vezes, divertida e descontraída, é o que eleva o disco a outro patamar.
Para fãs de: Stand Atlantic, Between You & Me e blackbear