Vibrante, comovente e profundo: Why Would I Watch envolve de maneira excepcional

Novo disco é impactante, traz letras intensas e íntimas, e contagia o ouvinte com sonoridade madura e brilhante

Capa: Wax Bodega

Hot Mulligan, grupo relativamente novo na cena do midwest emo, vem fazendo um ótimo trabalho na construção de sua assinatura sonora desde seu primeiro lançamento oficial. Pilot, lançado em 2018, apresenta a banda com letras melódicas, o vocal alto e energético do vocalista Nathan Sanville, e riffs de guitarra complexos e brilhantes – muito influenciados pelo post-hardcore. 

Foto: Kay Dargen

Cinco anos depois, Why Would I Watch é o terceiro disco da banda, juntando todas as qualidades mais cativantes que o grupo apresentou até agora em um som mais maduro e polido, sem deixar para trás (pelo contrário) as letras comoventes que emocionam o ouvinte e a mistura excepcional dos gêneros musicais que influenciam a discografia desde o começo.

É um álbum composto por músicas intensas que são, em sua grande maioria, muito vibrantes, camuflando as emoções pesadas com melodias dançantes e vocais que muitas vezes soam quase indiferentes à angústia exposta nas letras. 

A fragilidade da saúde mental, sentimentos incessantes de arrependimento e nostalgia e problemas familiares – desde traumas de infância até a realidade desesperadora de se tornar um estranho nos olhos de quem mais te conhecia – são algumas das temáticas contempladas nas doze tracks, em pouco mais de 37 minutos que parecem passar em um segundo.  

O DISCO: TRACK BY TRACK

Foto: Kay Dargen

Shouldn’t Have a Leg Hole But I Do abre o disco apresentando desde o ínicio uma de suas maiores características: o pessimismo misturado com energia e intensidade. Os vocais vão se intercalando entre Sanville, vocalista principal, e Chris Freeman, guitarrista e segunda voz. A track começa com um violão bem puxado pro emo e pop punk que só acompanha o vocal que, em primeiro momento, é o foco.

Quando a bateria de Brandon Blakeley entra, a música se transforma e o ouvinte começa a ser ambientalizado dentro da atmosfera mais pesada e agressiva dos ritmos e dos instrumentos do disco – uma novidade desse lançamento comparado com os trabalhos anteriores. Já nessa track é possível destacar também, mesmo que de uma maneira muito breve e um tanto que tímida, um riff de guitarra influenciado pelo post-hardcore progressivo – influência que marca presença ao longo de toda a tracklist. 

A letra é sobre a culpa por trás de uma idealização de suícidio, sobre uma depressão que parece não sair de cima dos ombros dos vocalistas. E, como Sanville e Freeman cantam nessa introdução, é melhor sentar, ficar e se fazer confortável, porque é apenas o primeiro minuto de um disco que já começa fantástico. 

Uma transição sutil – porém bem-vinda – encaminha o ouvinte para a 2ª track. It’s a Family Movie She Hates Her Dad não compartilha da mesma timidez quando se trata da guitarra rítmica como a anterior. O vocal entra com agressividade junto de um riff no fundo, que, apesar de ainda suave, compõe o ritmo da bateria e da guitarra principal de Ryan Malicsi, trazendo um brilho para a música. 

O ouvinte acompanha momentos delicados da infância do personagem da música e a composição detalhada retrata de maneira crua e sincera os problemas familiares expostos ali. Tudo produzido de um jeito enérgico e cativante – o andamento da bateria é muito bom de ouvir e a guitarra rítmica dá, ao longo de toda a track, um toque bem especial. 

So now it’s bottles breaking

See, the whole house is shaking

Let’s open up, tear down the walls and sink into the basement

É interessante perceber e dar a atenção merecida à mistura de sonoridades de diferentes gêneros musicais que a banda explora – e não apenas neste álbum, mas em toda sua discografia. Ela é trabalhada de uma maneira na qual nenhum elemento acaba acidentalmente se sobrepondo em outro e dominando a música inteira. 

Existe um equilíbrio tão bem feito entre essas referências que chega a ser injusto apontar um momento específico e dividir esses elementos ao longo de cada música, porque é um trabalho muito cuidadoso que mistura tudo em uma única coisa, em uma track singular, uniforme e que faz sentido.

Foto: Michael Herrick

Seguindo para a 3ª track, And I Smoke surpreende o fã da banda que já conhece os trabalhos anteriores. É um começo muito familiar, tanto a cadência vocal quanto a progressão dos instrumentos. O riff de guitarra entre os versos é bem catchy e o refrão não fica para trás. É o tipo de música que prende na cabeça e, apesar dos vocais intensos, os instrumentos são dançantes e animados. 

Em junho de 2022, Hot Mulligan lançou uma música chamada Drink Milk and Run. A banda apresentou aos fãs um lado mais pesado e urgente que não tinha sido tão explorado em trabalhos anteriores. Ela não entrou na tracklist de Why Would I Watch, mas a melodia e grande parte do ritmo foram reaproveitados em And I Smoke de maneira um pouco menos agressiva e compondo o disco com mais coesão. 

Desacelerando o ritmo e refletindo a melancolia das letras para os instrumentos, This Song Is Called It’s Called What’s it Called é um momento muito excepcional do disco. A escolha da produção da música faz com que ela não seja apenas uma balada se perdendo entre as tracks enérgicas. A introdução é calma, a bateria contida e a guitarra suave, o vocal relembrando de pedaços de momentos que se repetem na rotina. 

A transição do primeiro verso para o refrão muda totalmente o ritmo da música e o caminho que ela estava seguindo. A energia volta, o vocal se fortalece e, ao comparar com o começo triste da música, essa escolha pode ser traduzida como uma forma de expor desespero, angústia, diante do cenário da narrativa. Essa alternância entre lento e energético continua até o final da música que, além de ser uma escolha artística muito inteligente, indo de acordo com a letra, traz dinamismo – uma qualidade sempre bem-vinda. 

É uma composição sobre nostalgia e olhar para o passado com um certo arrependimento, pensando no que poderia ter sido diferente. É sobre o tempo passar tão rápido e tão no automático que os momentos não prendem na memória. Eles conseguem transmitir um sentimento comum para muitas pessoas de uma maneira muito tocante, tornando essa track um dos pontos mais altos de todo o disco. 

The nights I’d stay awake and saw

the morning shed its shadows long

the blanket I’d forget to bring

I half-remember everything

No Shoes in the Coffee Shop (Or Socks) acompanha a track anterior, quase como se fosse uma continuação. Ao se deparar com uma realidade cheia de arrependimentos e momentos deixados para trás e esquecidos, a 5ª track começa com um tom positivo no vocal de Sanville: Retrospect is best, I’ll buy a camera and record some stuff. Até que Freeman continua com o pessimismo que não aquieta, como se fosse o pensamento seguinte, e amarra todo o conceito do álbum no verso:

The question that came next

is if my memories lead to stark regret

well then why would I watch?

A composição inteira da música resume tudo que foi contado até agora. A nostalgia, os traumas de infância e os problemas familiares, a depressão que pesa os ombros e a certeza de ser uma inconveniência, um fracasso. O arrependimento olhando para o passado que se desenvolve na track e faz com que a nostalgia deixe de ter qualquer tom otimista no final. Retrospect is best, it’s always there so it can hold me back from the things I want. 

Durante quase toda a tracklist os vocais das músicas alternam entre a intensidade de Sanville e a clareza de Freeman. Em Christ Alive My Toe Dammit Hurts essa divisão da letra entre os vocalistas é ainda mais interessante – os cantores terminam as frases um do outro e em alguns momentos as vozes se sobrepõem, harmonizando de um jeito muito satisfatório para o ouvinte justamente pela diferença de entonação, de timbre, que se complementam perfeitamente. É relevante também destacar as guitarras dessa track, que são muito bem trabalhadas e desenvolvidas.

Betty é a 7ª track do álbum e emociona com a homenagem do vocalista para sua cachorra que faleceu. O violão que compõe sozinho o ritmo da música inteira, o vocal suave e o assobio complementando são suficientes para mexer com o coração do ouvinte. Cock Party 2 (Better Than The First) segue a mesma pegada emotiva da anterior, dessa vez refletindo sobre amizades que foram sendo deixadas no passado. No final, uma guitarra bem rasgada, puxada para um rock clássico, entra para fechar a música em grande estilo.    

As músicas mais lentas e melódicas do Hot Mulligan em sua grande maioria são acompanhadas por percurssões mais marcantes, independente do teor da letra. É uma característica que traz bastante dinamismo para as músicas – mostrando que apesar de tristes e melancólicas pelo vocal, guitarra ou letra, a intensidade sempre se faz presente. 

Shhh! Golf is On é intensa e impactante. O ritmo e toda a produção criam uma track muito envolvente, viciante de escutar. Principalmente pelo ritmo do refrão e pela entonação agressiva do vocalista em diversos momentos da música. Apesar de oculto, o significado da música é – mais uma vez – voltado aos seus problemas com sua família. 

Em entrevista para Brooklyn Vegan, Sanville conta que a track foi escrita para sua mãe, com quem sempre teve problemas. Re-check, change, palavras que ele repete ao longo da música, é quase que um protocolo que ele adotou para nunca se tornar igual a mãe.  

A 10ª track do disco, Gans Media Retro Games, segue uma estrutura parecida com And I Smoke, iniciando com um vocal potente e uma batida cativante. Um dos pontos mais altos dessa música é o fator realmente envolvente que a letra combinada com os vocais contagiantes trazem ao ouvinte. É impossível escutá-la sem ter um instinto muito grande de gritar junto com os vocalistas. Am I the problem?

Um recurso interessante que a banda utilizou em algumas tracks do disco, tanto em Gans Media Retro Games quanto também em outras como This Song Is Called It’s Called What’s it Called e Cock Party 2 (Better Than The First), é o sampling de algumas entrevistas e áudios antigos do grupo – servindo para reforçar ainda mais o tom nostálgico que toda a obra tem de início ao fim. 

Smahccked My Head Awf é a penúltima música e sem dúvidas a mais emotiva, mais comovente de todo o disco. É um desabafo de Sanville sobre sua avó que sofre com o Alzheimer, um relato sobre os desafios diários de observar de perto enquanto ela perde suas memórias. Ao longo de toda a música, o vocalista tenta tranquilizar sua avó ao mesmo tempo que ele tenta se tranquilizar. It’s okay, small mistakes. 

É uma track crua, sensível, dolorosa. É possível sentir a dor pela voz do cantor e pela letra que consegue transmitir para o ouvinte sentimentos difíceis de serem falados. Todas as músicas e todas as cartas que Sanville escreveu para sua avó chegam em seu momento mais triste, e é muito difícil terminar de escutar Smahccked My Head Awf sem se emocionar. 

Oh, I’ve written all these songs, all meant for you

But I’ll turn into a stranger before too soon

Would you remember if I never left?

I should’ve stayed

E quase que em um piscar de olhos, o ouvinte chega na última música do disco. John “the Rock” Cena, Can You Smell What the Undertaker fala sobre a infância religiosa de Sanville e como a religião desenvolveu diversos problemas psicológicos e emocionais no cantor quando ainda era apenas um garoto. É um encerramento bem sincero, pessoal, que combina com todo o disco.

Não chega a ser um destaque dentro do álbum, mas fica evidente que esse encerramento foi intencional quando a track termina com mais de quarenta segundos de sons sintéticos, ruídos e algumas vozes e risadas, amarrando o final com tudo que foi apresentado até aqui. 

37 MINUTOS E 24 SEGUNDOS DEPOIS

Hot Mulligan consegue criar uma explosão de suas melhores qualidades dentro de um trabalho só. A maturidade que os anos de experiência trouxeram para o grupo é muito notável neste disco e é muito interessante perceber os pequenos detalhes em cada momento e em cada música. É o tipo de álbum que abre espaço para novos significados e interpretações cada vez que o ouvinte escuta, novos entendimentos sobre um pedaço da letra ou o motivo pelo qual usaram tal instrumento ou efeito.     

Uma das maiores assinaturas artísticas da banda não é relacionada a escolhas sonoras, mas sim na escolha de nomear as músicas dos álbuns de maneira totalmente aleatória, com títulos que não têm significado e relação alguma com as letras das canções e normalmente são piadas internas entre os membros do grupo. 

Esse lançamento demonstra em toda a tracklist, seja na energia dos ritmos ou até mesmo na casualidade do vocal, uma indiferença que contrasta com os temas dolorosos abordados. A escolha dos títulos de cada música, mesmo que apenas para manter uma tradição, cabe muito bem para complementar a ambivalência que é constantemente exposta dentro do disco. A indiferença que se torna quase que um deboche ao lado de tópicos tão sensíveis e difíceis – tudo isso dá mais uma camada de profundidade e significado para o trabalho. 

É essa profundidade e sinceridade, que, misturadas com a produção impecável de cada música – produção que ficou nas mãos de Brett Romnes – tornam o disco tão especial. 

Em menos de 40 minutos, Hot Mulligan é capaz de capturar toda a atenção do ouvinte e fazer com que ele esqueça os seus arredores por um momento. É como se não tivesse passado tempo nenhum. Why Would I Watch é um álbum intenso, marcante, muito vivo – e extremamente fácil de ouvir por completo. É fácil de ouvir até mesmo quando as músicas comovem, seja apenas com um arrepio no braço ou por uma lágrima que cai.

A escolha de produzir as músicas de uma maneira vibrante, com tanta energia, é extremamente certeira. É uma escuta catártica, poder gritar e dançar músicas que falam sobre coisas tão complexas e difíceis. 

Foto: Lars Juveland

Hot Mulligan não sabe porquê assistir suas memórias, mas após escutar o álbum inteiro, o ouvinte sabe. Why Would I Watch é álbum de sentar, ficar e se fazer confortável, porque há muitos motivos para ouvir e assistir.  

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