Dualidade e ineditismo compõem o quarto álbum de estúdio do Bully

Há um ano, Bully lançava o melhor álbum de sua discografia até agora

Capa: Sub Pop Records

A arte como expressão, e a expressão como sobrevivência – são esses os pilares que compõem a discografia do Bully, projeto musical criado em 2013, em Nashville. Hoje, em sua fase mais pessoal, dá nome ao solo da multi-instrumentista, vocalista e compositora Alicia Bognanno, apesar de já ter sido composto por outros dois membros. 

Foto: Sub Pop Records

Lucky For You, lançado há um ano, em junho de 2023, é o quarto álbum de estúdio da banda, o terceiro lançado pela gravadora Sub Pop. É também o primeiro, desde que o Bully se tornou um projeto individual, a contar com colaborações externas. Além do ineditismo, o álbum também carrega um destinatário incomum, porém compreendido por todos que já perderam um pet, que se tornou a força motora de todas as composições de Alicia: é totalmente dedicado a Mezzi, uma pastora-alemã/Husky. Ela faleceu em 2022, após compartilhar muitos dos anos da vida da vocalista em uma companhia que se estendia até mesmo ao estúdio e aos shows da banda.

Foto: Acervo Pessoal

Em um post bastante emotivo, publicado na data de lançamento, Alicia escreveu:

“É um sentimento estranho e complexo lançar músicas e tornar público algo que por tanto tempo foi somente seu. Fiz o melhor que pude e estou muito orgulhosa desse álbum. […] Podia continuar para sempre, mas por enquanto, vou apenas dizer que te amo, Mez, esse é para você.”. 

Carregado de músicas que descrevem perfeitamente o luto e tudo que ele encapsula, inclusive uma forte sensação de mudança pessoal interna, o álbum traz a mesma força instrumental dos três anteriores. Conta com guitarras pesadas, graves linhas de baixo (já características da banda), e os intensos vocais de Alicia, que ecoam, diversas vezes, em versos com gritos catárticos sobre um passado que já não volta: (I wanna feel the way I used to), em dualidade com a necessidade imutável de seguir em frente sendo agora uma pessoa diferente (Heavy memories sink in / I’ll never get fucked up again / And I, I’m not leaving here / Burned-out wasting tears, I am done). 

Em “Days Move Slow”, o carro-chefe do álbum, lançado como single em março, Alicia retrata a dor da perda de sua antiga rotina, em uma letra que já traz à tona toda a sua capacidade de transformar os sentimentos mais básicos em versos, por mais difícil que seja lidar com a dor.

Ela canta sobre a mudança de rotina ao entrar em cômodos onde Mezzi não está, sobre estudar a vida após a morte, apesar de não ser uma pessoa religiosa, e sobre a sensação de estar em um buraco vazio, apesar de perceber que ela também precisa mudar. Pois, com o passar do tempo – para ela, agonizante, as flores em um túmulo também crescem. No vídeo, retratado em preto e branco, Alicia repete as mesmas tarefas domésticas em grande monotonia.

Em entrevista à FLOOD Magazine, Alicia falou sobre a necessidade e utilidade da escrita como ferramenta de aceitação e evasão de pensamentos – escrita essa que resultou em uma das mais bonitas letras do álbum, “A Wonderful Life”, eleita como a favorita de muitos fãs no Instagram. Tal faixa que, opondo-se às anteriores, exalta a vida de Mezzi, ao invés de falar sobre a dor causada por sua morte. Como consequência das mudanças ocasionadas pela perda, Alicia fala, mais uma vez, sobre a necessidade de entender que a vida segue – de modo diferente, mas segue –, e que ela precisa aprender a amar também as partes que odeia.

“Hard to Love”, o segundo single de Lucky For You, é acompanhado de um videoclipe marcado por efeitos especiais, que remetem a gravações antigas, porém com um toque de originalidade que carrega a essência do Bully. A track é impossível de ser definida com outra palavra que não seja muito badass.

A letra dura fala sobre a sensação de ser uma pessoa difícil de amar, e o vídeo mostra, também, dois lados de uma mesma Alicia – em alguns frames, a vocalista parece estar reflexiva e em sofrimento; em outros, ela dirige uma moto usando um terno preto e óculos, ao estilo de MIB  –, e a canção se encerra com uma ponte de aceitação perfeita, também em conexão com a música anterior, em que a compositora demonstra um esforço em se visualizar com mais ternura: 

“Deep breath baby it’ll be okay / And if it all falls and they can’t stay / Their loss, you don’t need them anyway”.

Os riffs do álbum, no estilo já conhecido pelos fãs do Bully, especialmente em destaque em “How Will I Know” – um dos pontos altos do álbum –, são o espelho da guitarra utilizada por Alicia, que ela chama de “Frankenstein”. Sua arma de escolha é uma mistura de Squier ’51, com um braço de Bluesman, possivelmente adaptado de uma Fender, que garante às músicas um tom mais robusto e grave e que cresce ainda mais em refrãos e pontes.

Se os fãs já sentiam a vontade de dirigir por aí berrando letras de música ao ouvir os álbuns anteriores do Bully, Lucky For You intensifica esse desejo.

Na sétima faixa, que pode ser considerada como um sumário da temática do álbum, “A Love Profound”, a voz de Alicia ressoa falando, em um tom confessional como em uma chamada telefônica, sobre uma mudança inevitável que a afeta por inteiro, pessoalmente e até mesmo em sua rotina (No matter how hard I try / I can’t wish away the idea of inevitable change // Guess that’s just the way it goes, we never really have control), completando um “ciclo” que volta ao mesmo tema das faixas de abertura.

Ao mesmo tempo em que é a música que mais se destoa sonoramente do álbum, mais lenta que as anteriores, ela está conectada a todas as canções já tocadas, abrindo também espaço para as próximas, em um shift de sonoridade.

Alicia e Mezzi; foto: acervo pessoal.

Voltando às raízes do punk, o Bully utiliza-se do tom grave das músicas para falar também sobre problemas políticos e sociais, nas faixas de encerramento, “Ms. America” e “All This Noise”, sem que as experiências pessoais da compositora sejam deixadas de lado.

Como diz em entrevista para a Nashville Scene, Alicia se pergunta: ‘Alguma vez sou levada a sério, sendo uma mulher?’, enquanto canta sobre a dificuldade de viver em um mundo de tragédias constantes que não parece mudar: (It’s hard when tragedy falls to watch the world keep moving on); (I’m tired of waiting / For change and debating // There’s no glory to be found / America’s been burning down), tudo enquanto fala sobre sua própria experiência com o aborto. 

A convivência com uma ‘síndrome de impostora’, gerada pela vivência da vocalista enquanto mulher, no entanto, parece estar sendo tomada como um catalisador para a permanência do Bully na cena. No Instagram, principal meio de comunicação de Alicia com seus seguidores, ela desabafou:

“Tenho tentado continuar fazendo o que sou profundamente apaixonada e o que me satisfaz, enquanto simultaneamente procuro por coisas sutis que possam esconder um pouco de mim. Quer seja vestindo roupas que engolem meu corpo ou mantendo meu cabelo bagunçado para cobrir meu rosto enquanto toco ou lanço música com o nome de uma ‘banda’ em vez do meu, fazendo barulho entre cada música ao vivo para evitar ter que falar com o público e, acima de tudo, me escondendo atrás do volume que me conforta profundamente. […] Mas, por alguma razão estúpida, pela qual continuo a me jogar no fundo do poço repetidamente, estou curiosa para ver que perspectiva ganharei com isso. Estou animada para ver se algo sai disso, e igualmente disposta a aceitar se nada acontecer.”

E o que aconteceu, de forma talvez inesperada por Alicia, foi que o lançamento do novo álbum colocou o Bully em destaque nos charts, principalmente devido a uma parceria em uma das faixas com Soccer Mommy, o projeto musical de Sophia Allison – um dos maiores sucessos do Bully até hoje.

O feat “Lose You” permaneceu por algumas semanas como a música mais escutada da banda no Spotify, e se tornou capa das playlists de descobertas musicais criadas pela própria plataforma, com mais de dois milhões de 2 milhões de reproduções no serviço de streaming. Com uma batida de rock dos anos 2000, a faixa parece ter sido criada especialmente para a trilha sonora de um filme com Lindsay Lohan, em uma colaboração inédita, visto que Alicia não costuma ter convidados no estúdio.

Apesar de não ser uma banda muito conhecida no Brasil, o Bully tem mostrado cada vez mais que veio para ficar – e que agora está saindo do ‘underground’ para a superfície da música onde merece estar para que se torne ainda mais prestigiado. É arriscado dizer, porém parece ser uma opinião popular, que Lucky For You é o melhor álbum da discografia do projeto até agora – uma demonstração de que Alicia não seja tão ‘impostora’ quanto pensa, e de sua capacidade de dar voz aos sentimentos mais obscuros.

Para fãs de: Wolf Alice, Speedy Ortiz, Pixies