Mestres em aprendizado: Envy retorna com Eunoia
Oitavo disco renova os ares ao mesmo tempo que resume sucintamente a trajetória da banda
Eunóia: termo de origem grega (εύνοια), que hoje tem o significado de benevolência, mente e espírito bons, boa vontade. No grego clássico, também encontra-se no termo o sentido de ser favorecido, estar em bons termos com alguém, de existir alguém ou alguma força a seu favor.
Em trinta e dois anos de estrada, os japoneses do Envy aperfeiçoaram a tarefa de traduzir sonoramente o inexprimível, e seguem encontrando maneiras de se expressar. Em entrevista à New Noise Magazine, o guitarrista Nobukata Kawai afirma que nessas três décadas eles aprenderam muito e ainda têm muito a aprender, e que nessa vida ainda encontra lágrimas dentro de si.
A banda retorna com um trabalho cujo título, Eunoia, reflete esse espírito tão humilde quanto grandioso da banda – espírito que se reflete ainda mais em seu conteúdo.
A JORNADA
Para quem chega agora, um resumo: o Envy foi formado em 1992, se destacando desde cedo na cena hardcore japonesa e deixando sua marca definitiva na década seguinte.
Seguindo uma metamorfose sonora, a banda transmuta do hardcore e assimila as dinâmicas do screamo em seu segundo álbum, From Here to Eternity (1998), em sintonia com o gênero praticado no ocidente por bandas como Saetia e Funeral Diner e desenvolvendo ainda mais essa sonoridade em All the Footsteps You’ve Ever Left and the Fear Expecting Ahead (2000).
Em 2003, é lançado A Dead Sinking Story, onde o Envy se torna de fato uma das maiores influências do estilo e introduz de forma ainda hoje inigualável a linguagem do post-rock no screamo. A catarse sonora atingida nesse álbum ecoou em toda a próxima geração de bandas do gênero, especialmente as europeias, como Daïtro e Sed Non Satiata.
Na década seguinte, onde esse nicho de som encontra um público maior, a banda expande sua influência. Não é incomum ver os integrantes do La Dispute e do Touché Amoré vestindo um merch ou comentando a influência do Envy, e, ouvindo A Dead Sinking Story, é fácil notar de onde vem a euforia sublime encontrada em Sunbather do Deafheaven.
Os trabalhos seguintes inclinam o som da banda mais para o post-rock (destaque para Insomniac Doze, de 2006), até um breve hiato que serviu para que se revigorassem com um novo line-up -– incluindo integrantes do Heaven in Her Arms, outra gigante do screamo/post-rock japonês. Eles retornaram com um universo sonoro em perfeito equilíbrio no álbum The Fallen Crimson (2020), e em dose concentrada no EP Seimei (2022).
Após uma trajetória tão longa e um legado incontestável, o ouvinte encontra uma banda demostrando o que é um trabalho realmente maduro, fruto de décadas de dedicação e aperfeiçoamento. Eles trazem em Eunoia, seu oitavo álbum de estúdio, um trabalho conciso, mas que reserva surpresas.
O DISCO
O álbum cativa logo de início, com a faixa introdutória “Piecemeal” levando de mansinho o ouvinte para o estrondo que se segue.
“Imagination and Creation” apresenta de forma exemplar o espírito do Envy. Está tudo ali: a subida das guitarras em tremolo, típicas do post-rock, e o spoken word intenso que cede lugar aos blast beats. Tudo isso junto dos vocais de Tetsuya, que alterna dos urros ao canto em um piscar de olhos. É um sobe e desce dinâmico, o eufórico e o sublime de mãos dadas.
Feita a apresentação, a sonoridade segue livre. “The Night and the Void” diminui a velocidade, mas mantém sua intensidade nos vocais após o belo crescendo. Em seguida, temos no centro do disco os dois singles lançados anteriormente, colocando em contraponto os dois excelentes lados da banda em seus extremos.
“Beyond the Raindrops” é o momento mais belo de um trabalho já repleto de beleza. É arrepiante o modo como os vocais suaves de Tetsuya se unem com as guitarras na seção final da faixa, com texturas de shoegaze —território até então inexplorado pela banda— que só contribuem com o sentimento poético.
Em contrapartida, “Whiteout” chega com os dois pés na porta, honrando o legado da banda no screamo/hardcore. A mix encorpada e polida de Eunoia valoriza tanto a pancada desse som quanto as passagens climáticas, atribuindo um aspecto cinematográfico e servindo para atrair ouvintes que ainda não tenham se aventurado por esse universo sonoro. Entretanto, fica de fora o minimalismo tão bem executado pela banda em trabalhos mais antigos. Isso acaba por restringir as possibilidades sonoras, ainda que a execução não perca sua excelência.
É possível destacar, em seguida, a dobradinha “Lingering Light” e “Lingering Echoes”: a primeira inicia com uma ambiência eletrônica já familiar no catálogo, que pode remeter a um dos interlúdios de A Dead Sinking Story, mas com flashes de guitarra que ameaçam o ouvinte. O interlúdio deságua na faixa seguinte, um prog frenético no estilo do The Mars Volta, com uma levada que talvez soe familiar para os chegados do swancore. É facilmente um dos pontos altos do disco, onde a banda opta por levar a tensão ao limite.
É uma surpresa constatar que a faixa seguinte, “January’s Dusk”, já encerra o disco. Ainda que de fato ela tenha aquele esplendor sonoro digno de fechar um setlist ao vivo—sendo, inclusive, a faixa mais longa, a curta duração do álbum deixa o ouvinte em estado de suspensão, clamando por mais sons e, ao mesmo tempo, admirados por serem apresentados tantas direções diferentes em apenas trinta minutos.
No balanço final, Eunoia é ao mesmo tempo uma demonstração focada de maestria, obtida por décadas de persistência, e um aceno para novas possibilidades sonoras. É um resumo concentrado da sonoridade do Envy que reflete novos ares, além de um bom ponto de partida para quem ainda não tenha embarcado na vertente do post-rock/screamo.