Declive e a importância de preencher as lacunas da cena underground 

A banda inicia sua trajetória mostrando que o hardcore está mais vivo do que nunca e conversa com o Downstage sobre a cena além da sonoridade

Arte: Laura Retamero

Com mais de 1 milhão e 700 mil moradores, a expressão “Curitiba é um ovo” faz parte do vocabulário de qualquer um que mora na capital. A sensação, mesmo que um tanto exagerada, é que todo mundo é conhecido de todo mundo, e a comunidade da música não foge desse fenômeno — é tão pequena quanto a cidade parece ser. 

Foi através dessa comunidade que os integrantes da Declive se conheceram e, anos depois, entre idas e vindas, se juntaram nessa formação conectados por propósitos em comum: fazer um som que ressoa no íntimo e trazer a essência do hardcore para os palcos (e para fora deles também).  

A banda, composta pelo vocalista Gueorgue Soares, baterista Carlos Baia, baixista Lucas Redekopp e os guitarristas, Renato Rossi e Guilherme Tanamati, lançou seu primeiro EP, O Conforto Te Quer Morto, em agosto de 2024. O projeto, com influências de bandas como Sepultura, Gojira, Knocked Loose, Sunami e outras do hardcore e metalcore, marca o início da trajetória do grupo. 

Em poucos meses de atividade, tocaram em casas tradicionais do underground em Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro, e receberam a oportunidade de abrir para o Silent Planet na capital paranaense. O Downstage conversou com a banda sobre atuais e futuros projetos, a cena musical em Curitiba e o futuro da Declive

A CONSTRUÇÃO DA DECLIVE

Foto: Vicente Filizola

“E aí, cara, quando é que a gente vai fazer um som juntos?” foi a mensagem que Renato enviou para Guilherme e que deu início à história da banda. 

“Curitiba é uma cidade pequena, então todo mundo sabia da existência um do outro”, conta o guitarrista sobre a formação do grupo. Renato já conhecia Gueorgue desde 2006, cada um com a sua banda, e tocaram juntos em vários shows. Com Guilherme (ou Tsu, como o chamam), foi a mesma história. Carlos, o baterista, também conhecia os outros integrantes em experiências dentro da cena. A música, no final das contas, foi o grande catalisador para que esse encontro acontecesse, anos depois. 

Foto: Alan Ferreira

O projeto estava no papel antes mesmo da definição concreta dos membros da banda, mas o objetivo de viver a música era compartilhado por todos. Renato, em outro país, tinha duas demos que, posteriormente, entraram na tracklist final do EP de estreia. Os outros integrantes já estavam tocando juntos e trabalhando na construção da Declive — mesmo que, inicialmente, com outro nome e outra direção. 

A união dos cinco, em janeiro de 2023, foi o começo oficial da definição da sonoridade, da junção das influências musicais que cada um trazia e do desenvolvimento do trabalho e da escrita em conjunto. Foi quase 11 meses depois, em dezembro, que as cinco músicas do primeiro EP começaram a ser gravadas. 

O CONFORTO TE QUER MORTO

“Impermanente” foi o primeiro single lançado do EP O Conforto Te Quer Morto, em maio de 2024. Faixa por faixa (um formato não muito comum dentro do underground, mas que deu certo aqui), a banda foi divulgando seu trabalho e construindo sua audiência. 

Renato conta que um consenso entre todos da banda era que o som fosse agressivo, forte e bom. O processo de composição partiu da preocupação em trazer todos esses elementos à vida e, também, oferecer ao ouvinte uma jornada sonora diferente em cada música do projeto. 

Foto: Lucas Shtorache

“A gente teve uma preocupação desde o começo de que o nosso som fosse variado e que cada música traga um sentimento diferente”, explica o guitarrista, e Gueorgue complementa: “A gente traz bastante influência do que está rolando hoje, e é bem importante para não fazer um som meio datado. Mas sempre trazer o que está vindo lá de fora e tentar dar o nosso toque brasileiro que seja, pra ser o mais original possível.”

Outro ponto muito importante para a banda ao trabalhar em seu EP foi explorar as letras em português. Para Renato, entender o que as letras estão falando faz com que o público consiga se relacionar com as músicas de uma maneira que, em inglês, pode não ser tão poderoso. 

A conclusão que é possível chegar com O Conforto Te Quer Morto é que todo o cuidado e esforço na produção, assim como em todos os processos da construção do grupo, indicam um futuro de muito sucesso para a Declive.

O HARDCORE ALÉM DO SOM 

Dentro da música, principalmente alternativa e underground, muitos gêneros musicais possuem contextos sociais que vão muito além da sonoridade. O rock e o punk foram impulsionados por volta das décadas de 50 e 70, respectivamente, através de movimentos pelos direitos civis e manifestações anti-sistema, anti-fascismo e a luta contra preconceitos. 

Foto: Bruno Valente

O hardcore, que nasce a partir destes outros estilos musicais, não foge da mesma narrativa. E, para Renato, a Declive não se enquadra, necessariamente, à sonoridade hardcore, e sim à essência do gênero e aos valores do que ser hardcore se pauta. 

Em pouco tempo de atividade, a banda teve oportunidades de tocar em shows em outras cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, e em festivais, como o Música e Atitude em Curitiba. E eles atribuem o mérito dessas conquistas à própria cena hardcore que abraçou o projeto — assim como abraça as causas que acredita, os movimentos que faz parte e o espírito que mantém a comunidade viva.  

“A maioria das bandas [do festival Música e Atitude] vinham mais do hardcore melódico. Tinham elementos pesados, mas eram muito mais melódicos. E eu acho que veio dessa ideia de que, na verdade, o hardcore é mais do que a sonoridade”, Renato reflete. “Ser hardcore é como você influencia a cena e como você faz parte dessa cena. Eu acho que é isso o que tá, na verdade, abrindo as oportunidades pra gente.”

Foto: Lucas Shtorache

Afinal, não basta apenas ser músico. É preciso viver a música. Principalmente em uma comunidade que além de ser artista, você também tem que ser fã. É difícil encontrar oportunidades sem participar da própria cena local, prestigiar outros artistas ou bandas e estar presente.  

Durante a conversa, Gueorgue traz uma reflexão simples, mas de muito impacto: o underground é uma questão de conexão.  

“Você tem que se conectar, e não tem outra forma a não ser consumir, ir em show, trocar uma ideia. É assim que a cena se constrói, é assim que os shows acontecem, é assim que as tours acontecem”

O ESPAÇO (OU A FALTA DELE) DO HARDCORE EM CURITIBA

Foto: Bruno Valente

O hardcore, quando associado à sonoridade, está muito vinculado a um som mais melódico e menos agressivo — pelo menos, é a visão dos integrantes após muitos anos dentro da cena musical. 

“O desafio que está sendo pra gente agora, na verdade, é criar essa associação de que hardcore também pode ser uma coisa não melódica, pode ser pesado”, explica o guitarrista. “Eu acho que tem várias pessoas que escutam metal e provavelmente gostariam de bandas de hardcore, mas quando ouvem ‘hardcore’, eles pensam em Bad Religion e bandas melódicas, e acham que não vão gostar”.

Além disso, Curitiba ser uma grande metrópole com carinha de cidade pequena tem seus lados bons e seus lados ruins. 

Por um lado, a comunidade musical é um centro criativo muito forte e com muita originalidade, como afirma Gueorgue. Renato traz outra perspectiva: apesar da criatividade e dos artistas que realmente usam a arte como forma de provocação, a cidade ainda é muito conservadora para o underground — é preciso ser criativo de um jeito certo para ser aceito, e, por isso, o hardcore ainda encontra certa resistência. 

Foto: Alan Ferreira

Neste contexto, “peixe fora d’água” foi a expressão que Renato usou ao descrever a Declive dentro do cenário underground local. Mas disse, também, que não vê isso como algo negativo. “Aqui em Curitiba a gente ainda não teve, de fato, um show que as bandas tinham 100% a ver com a gente”, explica. “Somos um pouco o peixe fora d’ água aqui, mas ao mesmo tempo, eu acho que é uma posição legal de se estar, porque remete ao que a gente tá querendo dizer, de trazer algo novo, de provocar alguma coisa, por mais que o nosso som não seja de agrado de todos.”  

A oportunidade de abrir o show do Silent Planet em Curitiba também se inseriu nesse cenário, de acordo com o guitarrista. Muitos elementos entre as duas bandas se conectam, mas há uma diferença no som que a banda abraça, com entusiasmo e gratidão, como uma grande oportunidade de apresentar seu estilo. 

Trazer familiaridade para o público e abertura para bandas que fazem, ou gostariam de fazer, um som parecido ao deles, mostrou ser um dos grandes impulsionadores da Declive. O Coletivo Pinha Cinza nasceu dessa vontade dos integrantes, junto de outras bandas e apoiadores, de movimentar a cena hardcore curitibana. 

Além de organizar eventos e festivais na cidade trazendo bandas locais e de outras regiões do país, o coletivo também tem como objetivo difundir mais informações para novos grupos que não sabem navegar o trabalho na música. 

“A ideia é fortalecer a cena, não só através de eventos, mas também criando uma rede de apoio onde as bandas possam buscar informação, possam compartilhar informações, compartilhar contatos”, explica Renato. “Se a gente não criar alguma coisa com uma certa frequência, a gente nunca vai criar essa cultura dentro do hardcore aqui em Curitiba”. 

Foto: Vicente Filizola

A Declive não se apresenta apenas como uma banda e não se limita apenas ao seu som. É nítido perceber o esforço e a vontade de ir além: fazer parte do hardcore como artistas, fãs, apoiadores e impulsionadores. Aqueles que vão atrás para fazer acontecer

O futuro da banda é muito promissor, com projetos em andamento, novas músicas escritas e engatilhadas, uma produção de muita qualidade e shows marcados. Mas é muito especial saber que, mesmo em um cenário no qual os integrantes decidissem seguir caminhos diferentes, Gueorgue, Carlos, Lucas, Renato e Guilherme continuariam movidos pela música e ajudando a abrir espaço para o hardcore que ainda está por vir.  


Declive abre para o show do Silent Planet em Curitiba, dia 13 de abril, no Belvedere Bar. Ingressos disponíveis no Fastix

Dia 26 de abril, participa junto de bandas como Obsoletion, Dente Canino e Clan dos Mortos Cicatriz em evento no Janaína Vegan. Ingressos disponíveis no Sympla

A banda compõe o line-up do segundo dia do Festival Hardcore de São Paulo, dia 12 de outubro, na Casa da Música. Ingressos disponíveis no Fastix