Hot Mulligan e a garantia de que tudo vai ficar bem
Álbum lançado em 2020 é uma catástrofe sentimentalista, mas que serve como aconchego
Bandas que encontramos para nos acolher em dias difíceis acabam sempre reservando um espaço precioso em nossos corações. Comigo e com o Hot Mulligan não foi diferente. Embora eu seja entusiasta e amante do “real emo” (ou midwest emo, o que você preferir chamar), demorei muito para dar, de fato, uma chance para a banda de Michigan e a sua impecável discografia. Embora eu não goste de trabalhar com arrependimento, o quarteto estadunidense tomou uma importância tão enorme na minha rotina que é difícil não dizer como eu gostaria de ter vivido esse impacto muito antes.
Estamos falando aqui de algo tão especial para mim que, caro leitor, peço a permissão de quebrar a principal regra editorial do Downstage para continuar com esse texto: a de jamais escrever artigos em primeira pessoa. Dito isso, o que você lerá a seguir é praticamente uma carta aberta, com muito carinho despejado ao longo dela. Do meu coração para o seu, mas também principalmente para o Hot Mulligan.
Apesar de eu ter o suficiente para falar e transformar esse texto num especial enorme sobre a banda, meu objetivo aqui é única e exclusivamente falar de you’ll be fine, terceiro álbum de estúdio do Hot Mulligan, lançado em 2020. Particularmente, sempre fui uma pessoa muito apegada aos primeiros trabalhos de um artista: o primeiro álbum, o primeiro EP, a primeira mixtape… por mais amadora que a mixagem seja para certas épocas e por mais que algumas músicas não sejam tocadas ao vivo há anos, sempre tive um enorme carinho pelas raízes e essência das bandas que escuto. Com Hot Mulligan, a princípio, não foi diferente.
Meu primeiro contato com o grupo foi com Pilot, disco de 2018 que considerei meu favorito durante muito tempo. Passei semanas e semanas ouvindo All You Wanted By Michelle Branch, e quando fui notar, já sabia cantar todas as letras da tracklist. Não demorei nadinha para mergulhar nos trabalhos anteriores: o EP Fenton (2015), Honest & Cunning (também de 2015), o single duplo Split (2016) e o álbum Opportunities, do mesmo ano. Desde canções que são facilmente consideradas Lado B da banda à famosa I Fell in Love with Princess Peach, não importava: eu sempre evitava o you’ll be fine, o último disco lançado.
Sempre tive uma certa resistência para mudanças muito drásticas de sonoridade, o que explica um pouco esse meu forte apego por primeiros álbuns e EPs de determinados artistas. Contudo, um dia resolvi dar uma chance à you’ll be fine, e por mais diferente que ele possa parecer no primeiro play (apesar de muito mais polido), me entreguei totalmente para a experiência que viria a seguir — e ainda bem que o fiz.
Sobre ser jovem, impulsivo e cometer um vacilo atrás do outro
Sempre fui apaixonada pela identificação, expressionismo e ultrarromantismo do midwest emo. Embora algumas bandas de pop punk façam um excelente trabalho em despejar sentimentalismo em seus versos a ponto de adocicar toda e qualquer tracklist, há uma clareza e triste sinceridade no emo que me atrai e me abraça em noites difíceis e momentos de melancolia e vulnerabilidade. O you’ll be fine chegou no início de março de 2020, quatro dias depois do meu aniversário, e serviu como um abraço longo, apertado e carinhoso, principalmente considerando os meses seguintes que ninguém sabia que viveríamos naquele tempo.
Para quem está acostumado com a introdução do Pilot, dar play em OG Blue Sky pode ser bem estranho, mas fácil de se acostumar. Logo de início o ouvinte já é esmurrado (literalmente) com um sentimento amargo de saudade de lembranças que não voltam mais. É algo que se repete ao longo de todo o disco, o que torna um trabalho tão confortável de se ouvir em dias difíceis que é difícil desapegar mais tarde.
Em entrevistas dadas na época, o Hot Mulligan chegou a explicar o nome do disco da seguinte forma (via Depth Magazine): “sempre nos dizem: ‘você vai ficar bem’, crescendo, seja por cotovelos ralados ou relacionamentos. O título aplica a mesma mentalidade para crescer, encontrar empregos e ter medo do futuro.” Em you’ll be fine, o quarteto de Michigan explora tempos que não voltam mais, relacionamentos que acabaram sem explicações e crises de choro que aparecem no meio de madrugada. Seja o tamanho da dor, não importa, há apenas uma certeza: de que ficaremos todos bem.
OG Blue Sky, *Equip Sunglasses* e Feal Like Crab viajam bastante por todos os pensamentos que esses episódios ansiosos proporcionam. Desde a culpa contínua de perder uma fotografia de alguém querido, passando pela dificuldade de lidar com o narcisismo alheio a (literalmente) se sentir inútil pela pressão social de ter uma faculdade e um emprego, o trio inicial de faixas servem como um soco, como se o elefante cor de rosa na sala estivesse aberto a boca e todos ao seu redor agora se veem atônitos para lidar com as palavras ditas.
Green Squirrel in a Pretty Bad Shape, a minha favorita do disco e, possivelmente, da banda, chega logo depois e quebra um pouco o tom enérgico das faixas anteriores. Há cartas e áudios de desculpas menos sinceros do que a letra dessa música, e deve ser por isso que sou tão apaixonada pela sua transparência impulsiva: como se o eu lírico não tivesse mais nada a perder, então resolveu drenar o coração com uma última declaração, mesclada de memórias perdidas e muito arrependimento de seus erros.
O fim da música retoma esse mal do século que é a depressão e a ansiedade. Aqui o eu lírico diz como se sente uma bagunça nos últimos dias, afundado na própria cama. “Talvez possamos conversar sobre isso, ou eu mudo em alguma coisa”, admite. Isso continua em Dirty Office Bongos, uma canção que fala de uma única situação: sobre não conseguir atender o telefone pela apatia e pensamentos estáticos, engolidos por uma fase deprimida; a culpa gerada e a negação ao receber o mínimo de empatia de terceiros. Hot Mulligan aqui é tão real que machuca, talvez porque pouco se vê alguém sendo tão sincero e duro sobre esses dias difíceis.
A vida passa (e eu vou ficando por aqui)
Se tem algo que faz com que eu coloque you’ll be fine na prateleira dos meus álbuns favoritos é justamente a construção da atmosfera e cenários que o trio de Michigan constrói em seus versos, proporcionando uma paz sem igual quando mesclados às melodias. Vemos isso acontecendo na primeira faixa do disco, em Green Squirrel e em Analog Fade (New Blue Sky). Artistas como Taylor Swift possuem bastante esse costume de descrever o ambiente antes de começar o storytelling das músicas, e quando isso acontece nesse disco, é uma surpresa agradável demais.
Em Analog Fade somos apresentados a um sentimento agridoce de ver alguém que tanto amamos seguindo a vida sem nós. A vida continua: pessoas viajam, arranjam outros empregos, se envolvem com outras. Essa música fala sobre isso, mas não necessariamente sobre esse sentimento de saudade, e sim sobre o momento em que acontece. Por mais curioso que pareça, tudo fica mais doloroso, talvez pela construção desse cenário em que nos pegamos sendo essa pessoa: encarando a janela do trem e vendo a paisagem correr; com os mãos no volante em uma longa estrada; encarando as montanhas. “Eu sei que vou te perder em breve / vá / só esqueça tudo sobre mim”, encerra a rápida letra.
We’re Gonna Make it to Killby! traz o Hot Mulligan de volta aos tradicionais berros do midwest emo, mas em termos de narrativa a canção dá um enorme salto temporal. Aqui já conferimos um outro lado dessa dor da distância, espaço e tempo: latas vazias, eu dormindo na sua cama, suas coisas guardadas numa caixa em uma alta prateleira do armário. “Você encontrou alguém novo”, fala rapidamente o eu lírico. “Eu guardei o que você deixou enquanto você [me] deixou por novas casas.”
Como todo processo de luto, há a fase da raiva. Diggin In explora muito bem isso ao mesmo tempo que mescla esse sentimento com o de negação. Há fúria por toda parte, uma saudade nociva e a vontade de jogar tudo no ventilador. “Os dias são mais difíceis com o seu fantasma, mas a dor vai lentamente indo embora”.
SPS e BCKYRD preparam o ouvinte para o fim. Duas faixas absurdamente difíceis de serem ouvidas, tão duras de serem engolidas quanto um líquido amargo. A dualidade aqui, no entanto, é fascinante: enquanto uma soa como um desabafo frustrado e traz algumas referências a alcoolismo, a outra brinca com carinho com o sentimento de nostalgia e de memórias boas que não voltam mais. “Poderia ficar mais tempo se soubesse que tudo isso passaria”, canta o eu lírico na penúltima faixa.
BCKYRD é uma das mais especiais músicas desse trabalho justamente por isso: ela evoca essa sensação despreocupada de deitar na grama, enquanto o restante do álbum fala como o crescimento pessoal só vem de momentos de muita dificuldade e dor. Longe de romantizar a tristeza, é aprender com ela, viver com ela e saber que ela faz parte da vida por mais que tenhamos muita dificuldade de admitir.
The Song Formerly Known as Intro fecha o disco. O Hot Mulligan sempre brincou muito com títulos de música e aqui jamais seria diferente. No entanto, a última faixa é o momento em que o ouvinte chora copiosamente (se ainda não o fez). Todo momento de berro é uma expressão da catástrofe emocional armazenada no íntimo humano, uma explosão de vulnerabilidade, reflexão e confusão. you’ll be fine é uma verdadeira montanha-russa que anda lado a lado ao ineditismo, natureza tumultuada e falta de controle e previsão da vida. É tão real que dá raiva, mas tão perto de casa que aconchega.
Para corações turbulentos, mentes inquietas e noites de ansiedade, o Hot Mulligan entrega aqui o seu melhor disco da carreira até então. Ultrapassando limites da sensibilidade sem medo algum, mesmo com os olhos marejados o ouvinte termina o álbum com apenas um sentimento: o de que vai ficar tudo bem.
Para fãs de: I’m Glad It’s You, Mom Jeans. e Free Throw