Música, risadas e (alguns) spoilers: uma tarde com a banda que nunca foi embora
Em entrevista ao Downstage, Fresno fala sobre seu décimo disco de estúdio
Eu Nunca Fui Embora – Parte 1 tocou pela primeira vez no carro, a caminho do Artsy Club Studios, na Vila Madalena. Um primeiro de abril nada típico. À aquela altura do campeonato, as perguntas já estavam desenhadas, mas a reprodução da primeira parte do disco resultou em alguns rabiscos no bloco de notas do celular – referências, curiosidades e aquele tradicional “se der tempo, eu pergunto sobre isso”.
40 minutos de antecedência foram o suficiente para rever todo o papo antes de adentrar o enorme estúdio que já fora palco de ensaios dos Titãs, Ayabass e, é claro, Fresno, antes dos shows para a I Wanna Be Tour. Aconchegante e espaçoso, a tarde de imprensa foi destinada para poucos veículos, o que justificou depois uma conversa tão longa e proveitosa sobre o “álbum do ano”, como brinca a própria banda em materiais prévios ao lançamento de ENFE.
“Fresno”, responde Lucas Silveira à minha primeira pergunta, em tom de brincadeira, a fim de descontrair antes de uma série de questionamentos sobre saída da gravadora, ações com fãs, planos futuros e mais. “A gente estava em Fresno, no ano passado e tinha uma loja que não era um brechó, era uma loja de coisas, que tinha um baú assim… um dólar cada camiseta.”
Fresno’s Best Rock the Blaze, dizia a camiseta que o vocalista vestia naquela tarde. “Tinham muitas coisas escrito ‘Fresno’, essa aqui é da Rádio Rock de Fresno”, explica ele, mostrando a estampa.
Localizada na Califórnia, a cidade de Fresno é uma das mais populosas dos Estados Unidos e, apesar de não ter sido o cenário que abrigou a banda do mesmo nome na produção do décimo álbum, obviamente seria uma parada indispensável na viagem criativa. Eu Nunca Fui Embora, no entanto, surgiu há muito mais tempo do que agosto de 2023, momento em que o trio embarcou para Los Angeles.
“Eu não tenho memória de ver outras pessoas na cidade enquanto a gente tava lá”, relembra ele, em paralelo. “Tava 40 graus. A gente andando pela prefeitura, pelos negócios, mas não víamos outras pessoas na cidade inteira.”
“Não tinha”, acrescenta Vavo. “E a gente estava com medo de andar no sol e ficar vermelho porque íamos gravar o clipe no dia seguinte.”
“O clipe de…?”, questiono, com ambos respondendo “Eu Nunca Fui Embora” em uníssono, mas sem antes, é claro, de arrancar um spoiler de Lucas: “E um outro clipe também que vem por aí.”
“Que ainda não está pronto”, acrescenta Guerra, sorrindo logo em seguida.
Esse seria o primeiro spoiler que viria no papo, mas para contar essa história, é necessário retroceder para meados de 2023, em que a Fresno ainda era assinada com a BMG, gravadora-casa de discos como sua alegria foi cancelada, Vou Ter Que Me Virar e a mixtape INVentário.
“Dá mais trabalho”, revela Vavo quando questionado sobre isso. Essa é a segunda vez que a banda se vê independente depois de uma passagem por gravadoras, mas dessa vez, mais experientes e com uma base de fãs ainda mais consolidada.
“Decidir é muito bom e muito muito ruim também”, complementa Lucas. “Tem um certo crivo, não é questão de querer fazer tudo também; mas é questão de estar ali a par. Acho que isso significa bastante, porque hoje em dia, pô, a gente consegue ser independente, mas cara, fazer o lançamento ter força, óbvio que dentro das limitações… o principal é que um bagulho que talvez com um rolê de gravadora não fique mais difícil é a calma de um bom lançamento.”
Ele explica: “Os bons lançamentos são feitos com muita calma, e mesmo com muita calma, tem coisas que acaba tendo muita correria, mas aí se não fosse calma, nem isso tu faria, entendeu?”
Vavo adiciona: “e ser independente não significa estar sozinho. Um time é montado: um time de assessoria de imprensa, mídias sociais, shows… é um time muito grande que é possível hoje — talvez não fosse possível no passado, mas hoje é possível.”
Mesmo com uma parceria da gravadora durante o lançamento dos dois últimos discos e, inclusive, de um projeto experimental que foi possível de ser realizado durante a pandemia (Leia mais: O INVentário da Fresno e a arte pela arte), uma coisa é unânime entre Lucas, Vavo e Guerra: Eu Nunca Fui Embora sempre foi um trabalho pensado para ser lançado de forma independente.
“Mas, assim…”, explica Lucas. “A gente sentiu que foi tudo muito certo. E de onde que vem a tranquilidade? A tranquilidade de falar assim, ‘a gente não precisa disso aqui, a gente pode fazer de outro jeito’, sabe?”
“Os limites somos nós que decidimos”, acrescenta Guerra. “Porque a gente também tem essa visão mais certa do limite, da possibilidade, do que a gente pode fazer, sabe assim?”
E uma vez independente (de novo), como foi cuidar dos mínimos detalhes? Uma coisa é fato: Eu Nunca Fui Embora foi o disco que mais envolveu os fãs até agora na campanha pré-lançamento. Uma lista VIP foi criada para convidar pessoas especiais para a gravação do clipe de Eu Te Amo / Eu Te Odeio (IÔ-IÔ); um ônibus foi adesivado para levar fãs para o Lollapalooza 2024 no dia da apresentação do blink-182 em que, durante o trajeto, esse grupo de pessoas ouviram em primeira mão o disco entre outras ações.
“A nossa relação já é muito forte com eles”, explica Guerra. “Mas, sim, ter esse tempo do processo ser bem pensado e ter as ideias vem de outro momento que a gente teve independente.”
As próprias listening parties, que tomaram conta da semana em que o ENFE viria a ser lançado, era uma ideia já pensada e anotada há muito tempo pela banda. “Víamos muitos gringos fazendo isso em lojas específicas, tipo a Hot Topic — e a gente não tem essa estrutura aqui no Brasil. Mas sabe o que a gente tem? Uma rede. Os fãs”, revela Lucas.
Ele continua: “A gente sabe que temos fãs não apenas ao redor do mundo. Até no Brasil, que a gente não consegue ir às vezes em algumas cidades porque fica caro e difícil, às vezes não tem contratante lá pra viabilizar o negócio. A gente não é uma banda gigante ao ponto de, às vezes, ir investindo assim e bora, sabe? Tem coisas que a gente não consegue ainda fazer, mas, pô, mas mobilizar essa rede de fãs ao redor do mundo é muito foda.”
Um amontoado de emendas criativas
Foi naquele enorme estúdio à meia-luz que Lucas, Guerra e Vavo olharam em retrospecto para a Fresno pré-pandemia, em que Vou Ter Que Me Virar antes de ter um disco para chamar de seu, havia sido pensada para ser uma faixa bônus de sua alegria foi cancelada. É válido relembrar um pouco aqui como tudo isso aconteceu e em que momento o INVentário acabou surgindo para o grupo, mas a curiosidade veio justamente na Era atual, escolhida pela banda para ser banhada de Verde Tiffany.
“Meio que emendando as coisas”, respondeu Guerra, referindo-se em qual momento as faixas para o novo disco surgiram.
“Faz um ano que eu não faço uma música da Fresno”, acrescenta Lucas. “Porque eu tava trabalhando nessas que a gente fez. Aí, normalmente quando lança, parece que libera um espaço e, também vendo feedbacks, tu vai entendendo coisas que tu tava afim de fazer e de explorar.”
No entanto, Eu Nunca Fui Embora foi além: em 2020 e 2021, quando a Fresno acolheu os fãs em lives da Twitch madrugada adentro, a faixa surgiu em uma das noites criativas da banda com o público. “Ninguém se lembrava, era mó devagar”, diz o vocalista. “Uma semizoeira, mas eu me lembro que eu botei um asterisco, tipo, ‘isso aqui tem que ser revisitado em algum momento’ — isso aí aconteceu com várias músicas, até [algumas] do Vou Ter Que Me Virar.”
“A gente sempre procurou ser… multidimensionado”, explica, referindo-se a justamente ter tempo e espaço o suficiente para compor e ter acessos criativos. “De não ficar em uma coisa só; num intervalo de um ano e meio inevitavelmente vão surgindo algumas músicas, e aí, sei lá, faltam umas três e você fala assim, ‘precisamos de uma porradeira aqui, uma baladinha aqui, uma maluca lá…’.”
E na hora de montar a tracklist ou até coisas mais complexas, como rachar o disco em duas partes? Guerra até brinca que “tudo vai caindo como se fosse um jogo de Tetris”. Planos mudam conforme o trabalho vai sendo revisitado naturalmente.
“A gente mudou, inclusive”, relembra Vavo, revelando que Eu Nunca Fui Embora não foi pensada inicialmente para dar início ao disco. “Tinha a primeira música da segunda metade. A gente vai mudando o disco.”
Lucas já vai para um outro lado e pensa no público, mais especificamente em quem “não tem expectativa nenhuma”. É claro que, para ele, ouvir uma faixa como fã é um dos primeiros passos na hora de montar a tracklist, mas o próprio vocalista descreve que “gosta de pensar no fã; no irmão dele, que ele mostrou a faixa e diz ‘isso aqui tá legal’, e às vezes no cara que tava lendo as notícias e viu que a Fresno lançou um novo disco.”
E para esse cara do elevador, a notícia chegou: Eu Nunca Fui Embora – Parte 1 chegou aos ouvidos dos fãs oficialmente no dia 5 de abril de 2024, com sete faixas e pouco mais de 23 minutos de duração. É o primeiro disco da banda a ser dividido em duas partes justamente por conta de toda uma estratégia por trás: a de trabalhá-lo por muito mais tempo; descrito na fala da banda como “fazer o lançamento ficar mais longo.”
“Às vezes no final do disco tem uns tesouros, assim”, puxa Lucas no papo, relembrando da estrada de Los Angeles para Fresno, em agosto do ano passado. A analogia parece aleatória, mas as três horas e meia de viagem no asfalto, mas com a segunda metade de Eu Nunca Fui Embora tocando na rádio do carro o fez lembrar da tranquilidade de produzir esse disco.
“Tinha uma faixa que tiramos, e tá tudo bem. Aí em março desse ano chamei os caras de novo e pensei ‘essa música aqui pode virar algo’, e vamos gravar de novo. Então as faixas vão mudando”, explica. “Também pensando que a Parte 1 tá muito foda, como fazemos a Parte 2 também ser muito foda e ter muitos chamarizes.”
“Sinto isso como um crescimento foda”, complementa Guerra. “Eu aconselho todo mundo a fazer as paradas com tempo para mexer, ouvir, ouvir de novo e ter essa visão porque isso mudou bastante coisa pra gente.”
O baterista relembra inclusive que foi por conta desses espaços longos de tempo, visitas e revisitas criativas, que Natureza Caos encontrou seu espaço em sua alegria foi cancelada, que é hoje sua maior referência e exemplo para sustentar esse tipo de pensamento. “Sou muito feliz por isso, ela tinha que ter uma casa massa. É uma música que merece”, conta.
“Inclusive, senti um pouco dela em Quando o Pesadelo Acabar”, comento, referindo-me ao início da faixa que pode soar um tanto familiar para os fãs. “Senti um pouquinho também de Caminho Não Tem Fim em Era Para Sempre, também.”
“Com certeza, com certeza”, concorda Lucas. “Essa música, ela existia a parte calma… é isso o lance de ter tempo também [risos], ela tinha a parte calma, mas aí eu mostrei pra Karen e ela disse ‘acaba assim?’ e isso me lembrou inclusive quando mostrei O Arrocha Mais Triste do Mundo para o Guerra, ela era uma vinhetinha que encaminhava para o disco, mas poderia ser algo maior.”
Ele continua: “Fresno tem uma tradição de ter uma ou outra música muito comprida, muito cheia de partes, muito cheia de coisas, e… parece que tem alguns fãs que só gostam dessas — mas parece muito também que a gente poderia ser uma banda que só tem essas músicas. Contudo, no caso de Era Pra Sempre eu falei ‘vamos fazer isso sem perder o fio da meada’. Porque às vezes esse tipo de música requer um olhar de quem já gosta do bagulho, o cara sabe o que ele vai encontrar (inclusive, ele vai ouvir até o fim porque ele quer chegar naquela coisa), e com essa eu falei: ‘vamos tentar fazer ela não ficar com seis minutos?’ [risos].”
“O que aconteceu foi muito… óbvio, ela fala sobre três estágios de relacionamento e sempre com isso de ser pra sempre, mas o desafio que me coloquei ali, querendo arranjar a música, pensando nisso, foi tipo ‘vamos fazer isso, mas sem virar uma lenda e principalmente fazer com que sempre volte pra esse refrão’, ou seja, O que Stonehenge não tem, por exemplo; Em Cada Poça Dessa Rua não tem; são músicas que não têm refrão, não volta, elas só vão embora — e é legal! Virou uma coisa muito nossa isso, mas com essa música eu falei que teria refrão e que não seria tão grande; vai mostrar essa coisa suave da Fresno.”
Guerra, Eu Nunca Fui Embora e NUMATOFUTURO
Mais para o fim do papo, é nítido que a pergunta até chegou a pegar um pouco Guerra desprevenido: “Como foi para você administrar dois lançamentos tão grandes e tão perto um do outro?” — NUMATOFUTURO, o primeiro disco do projeto solo do bateria, foi lançado no dia 23 de fevereiro, descrito como “um lindo processo de descobertas interiores”.
“Seria impossível fazer sozinho. Eu já sou meio devagar nas redes sociais em comparação com a galera”, revelou. “Mas deu super certo, porque foi um momento que a gente tava só cozinhando as coisas da gente, da Fresno.”
“Meu lançamento é totalmente diferente, é outro tipo de coisa”, complementa. “Aquece também para minha parte de contribuição nas redes da Fresno e acho que isso é muito massa.”
E a parte 2?
Questionados se a parte 2 já está finalizada, os três brincam com um “éééé…” em uníssono, mas depois respondem: “Acabamentos!”, “Sim, acabamentos!”
“Ela já existe, conceitualmente, aí tem coisas que estamos numa fase de… Será que essa música aqui a gente chama alguém? Será que essa aqui a gente põe antes dessa?, umas coisas assim, mais operacionais. Mas assim, a segunda parte já tem começo, meio e fim”, finaliza Lucas.
E o que esperar dela? O trio ainda “não aproveitou o saldo do I Wanna Be”, como eles mesmos brincam, mas com toda certeza vem algo por aí, mesmo que não seja propriamente para a segunda parte de Eu Nunca Fui Embora.
“A galera se curte e se comenta, acho que isso aí… eu não tenho dúvida assim de que vai rolar, mas não consigo enxergar como algo pra agora, porque tudo meio que é isso, fazer com calma, visitar e fazer umas músicas”, revela o vocalista.
“Todos vieram com esse papo. Até mesmo antes, em Nashville, quando fui buscar umas coisas, o Chris do Dashboard Confessional virou e falou ‘vamos fazer umas músicas!’, e a gente já tava indo embora, mas pô! Quando a gente voltar é uma obrigação moral, tem que fazer”, relembra ele, colocando a mão no ombro de Vavo. “Pra mim e Vavo ele é tipo, deus emo, referência pra Fresno.”
“E sobre I Wanna Be foi essa conversa geral, óbvio que a gente vai ter que fazer uma música com os caras! O próprio romance e amizade ali com o The Used. No final tava todo mundo amigo”, relembra ele.
Guerra também comenta sobre as memórias de março: “A gente chamou o baterista do Plain White T’s pra cantar com a gente, duas vezes! Se o festival tivesse 20 datas…”
Lucas finaliza: “…estaria rolando de fazer música ali mesmo no camarim!”
Risadas, lembranças e brincadeiras. O papo encerra com muita descontração, mas é claro, sem antes perguntar: “a parte 2 terá a mesma capa?”
Lucas sorri e diz: “Com certeza é outra coisa. Mas a gente já deve ter feito essa foto… só tem que escolher.”
Vavo complementa: “Mas a ideia é que sejam coisas meio… conversantes, sim.”
Sem data ainda para o lançamento do segundo capítulo, a expectativa é que a parte 2 “traga coisas novas, sim”, como a própria banda revela. O intuito é que essa continuação seja o que diga, de fato, que “esse disco foi lançado”, com mais faixas complementando a tracklist e trazendo essa atmosfera completa de uma Era entregue para os fãs e para o mundo.
“E aí tudo o que vier depois…”, começa Lucas.
“Até porque eu não tenho que vender discos sem ter a parte 2, né?”, brinca Vavo com o vocalista.
“É, e tudo que vier depois da parte 2 é pra quando a gente também tá mirando: os shows do disco, o conceito do disco. Tudo para ele estar pronto”, explica.
“Precisamos agora?”, entra Guerra na brincadeira.
“Claro! Tu vai precisar do vinil de um disco que não existe?”, responde Lucas. E as risadas ecoam.
“A gente mudou as músicas… e agora tem que terminar!”
Eu Nunca Fui Embora – Parte 1 já está disponível em todas as plataformas digitais.