Canções de (e para) um mundo perdido: The Cure reforça que ainda há muito a se chorar
Songs of a Lost World transfere a conversa sobre a banda do legado para o presente
Dezesseis anos após o seu último álbum de músicas inéditas, The Cure retorna com seu novo trabalho, Songs of a Lost World. A banda entrega um disco tocante, cheio de peso e que oferece uma escuta envolvente, mergulhando o ouvinte em momentos de reflexão.
Ao olhar para o passado, é possível relembrar de momentos onde se faltou o chão e a arte se fez conforto, um aceno que permitiu a liberação de um choro em vias de erupção. Em tais momentos, a obra se faz, por vezes, de ombro amigo, e a chuva vinda dos olhos embaçados é derramada até que a visão retorne, tornando possível voltar a se recompor.
Ao olhar para o presente coletivo, vê-se o mundo se descompassar em ritmo cada vez mais acelerado, com tamanha agressividade que a sensação é sufocante. E se torna mais difícil chorar durante o sufoco, o pânico. Trata-se de um outro tipo de tristeza. Mas eis que esse amigo retorna, trazendo novas palavras a respeito do absurdo. Ele também sente seu mundo particular sendo abalado, mas sua experiência reforça que a gravidade se expande junto com o pensamento para o mundo ao redor. Aproximam-se, em um abraço sinistro, os dois significados atribuídos à palavra “gravidade”. Pesado, imóvel, inescapável. É com esse pesar que o The Cure traz o seu mais novo disco.
IN BETWEEN DAYS: OS ÚLTIMOS DEZESSEIS ANOS
Desde seu último lançamento de inéditas, 4:13 Dream (2008), a banda passou por uma série de peripécias que já podiam ser vislumbradas naquele trabalho, entregando um nível abaixo do esperado — especialmente após o revigorante álbum auto-intitulado de 2004. Brigas, trocas e retornos de integrantes, a perda de um dos fundadores do grupo para o câncer em 2019. Houve de tudo durante a jornada para o lançamento deste novo projeto.
O cenário passa a mudar quando, em 2018, o The Cure consagra sua quarta década de existência com um festival com curadoria do próprio Robert Smith, dividindo palco com gigantes como Nine Inch Nails e bandas atuais como Alcest, atestando sua relevância e vínculo com a nova geração da música e de ouvintes, influenciados e cativados por sua obra.
O fôlego recuperado motivou então a banda a anunciar novo material no ano seguinte, até que a paralisação do mundo pela pandemia surge como outro obstáculo.
Após estes dezesseis anos de percurso, com inúmeras canções gravadas, demos revisitadas e promessas de novo material, os fãs recebem as músicas de um mundo perdido.
O DISCO
O álbum se inicia com “Alone”, mesma canção com a qual iniciaram o show no Primavera Sound em 2023, a qual desarma de cara o ouvinte com um ritmo arrastado e melodia congelante. A sensação é dual: os timbres e o clima remetem imediatamente à época de Disintegration, ao mesmo tempo em que nada soa datado, nem sequer nostálgico.
Assimilado o choque, entra o vocal. A voz de Smith pouco mudou desde a obra-prima de 1989 até aqui. Se mudou em algo, foi no quanto de emoção ela carrega em seu timbre, como se absorvesse tudo que foi vivido de lá até aqui e em cada grama de desgosto destilado em voz e mensagem, que anuncia um final já na sua chegada:
This is the end of every song we sing
A letra também traz inspiração do poema “Dregs”, de Ernest Dowson. De acordo com Smith, em entrevista ao Independent, a leitura deste poema e a reminiscência de assistir o foguete Apollo II ao lado do pai em 1969, foram momentos-chave nos quais ele vislumbrou o mapa do novo registro tomar forma.
Dado o primeiro golpe, o piano e o sintetizador dão início à marcha de “And Nothing Is Forever”, canção em que Robert revive uma promessa feita a uma pessoa amada no leito de hospital. O instrumental e letra transferem a desolação do geral para o particular em um sentido lamento.
Na entrevista para o Independent, Robert comenta que os amigos que ouviram o projeto em seus estágios iniciais se chocaram com o quão pra baixo tudo soava. A ideia inicial era o lançamento de dois álbuns, um totalmente depressivo e outro mais eclético. E, a partir da próxima faixa, é notável que a banda levou em conta as opiniões dos amigos e optou por condensar no mesmo disco as duas facetas sonoras.
Assim entra “A Fragile Thing”, canção que remete a eras mais pop da discografia, como The Head on the Door (1985) e Kiss Me Kiss Me Kiss Me (1987). É uma faixa perfeitamente redonda e que entraria facilmente em um desses dois discos, demonstrando que a banda não perdeu a mão para os hits.
Dada a pausa para dançar, o clima denso retorna em cheio com “Warsong”. Com um timbre de baixo estrondoso, a faixa é um drone psicodélico onde a guerra narrada por Smith metaforiza a divisão gerada por uma relação desgastada. As texturas das guitarras trazem uma linguagem renovada para a expressão melancólica do The Cure, com uma eventual ambiência marcante que remete ao post-rock praticado pelas bandas que cresceram ouvindo o grupo.
“Drone:Nodrone” é, talvez, o ponto mais fraco do álbum. Uma faixa sólida que evoca uma vibe sexy, datada, mas que se garante na eletricidade do baixo de Simon Gallup, que convence o ouvinte a apreciar a track, marcada pela batida noventista e pelo wah-wah na guitarra.
Além disso, a caneta de Smith segue em chamas, descrevendo, de uma forma que só a experiência de vida permite, um eu-lírico confuso e preso aos maus hábitos. O contexto do disco faz essa faixa brilhar menos que as demais, mas com certeza cairá bem em um setlist do Madame Underground Club em São Paulo. (É um elogio!)
Na sequência, outro destaque temático do disco. Em entrevista, Robert desabafa sobre a próxima faixa: “Quando você é jovem, romantiza a morte mesmo sem perceber. Então ela atinge seus parentes próximos e amigos e aí a coisa muda. É algo com o qual me debati liricamente: como colocar isso nas canções? Me sinto diferente de quem eu era desde a última vez que fizemos um álbum. Eu quis que isso transparecesse”.
A melodia circular e simples do piano de “I Can Never Say Goodbye” abre espaço para o luto de Robert Smith, que consegue retratar a perda de seu irmão de forma simples e direta, mas sem perder o molde poético.
Something wicked this way comes to steal away my brother’s life / Something wicked this way comes, I could never say goodbye
A faixa, instrumentalmente tão simples, carrega provavelmente a mensagem mais dura do disco, iniciando assim a tríade final dessa jornada.
A lucidez lírica de Robert Smith domina então o cenário em “All I Ever Am”, faixa dançante e melancólica onde a pessoalidade se intensifica. Ela traz um desabafo sincero, mas que não perde de vista a ternura nas palavras, sobre a passagem do tempo sentida na idade, na consciência do quanto foi vivido nesses sessenta e cinco anos e de que ainda há mais por vir. Ela engloba, também, o quanto foi gasto em pensamentos, do medo de não mais pensar e do quanto isso define sua identidade.
Encerrando o disco, “Endsong” é um transe hipnótico de dez minutos que envolve o ouvinte em pesar. Se durante as faixas anteriores os fãs foram conduzidos pelo mundo perdido de Robert Smith, aqui este se revela como o próprio mundo coletivo, deteriorado e encarando a todos de volta.
It’s all gone / I will lose myself in time / It won’t be long
O transe remete a “Homesick” e o título a “Plainsong” e “Lovesong”, uma piscadela dupla para os entusiastas do já citado Disintegration e um encerramento triunfantemente pessimista para o disco, que fecha as cortinas levando o ouvinte de encontro ao esvaziamento quando o artista se derrama em sua criação.
I’m left alone with nothing at the end of every song
Nada mais justo do que aproximar o ouvinte dessa posição. O mundo é um palco, afinal.
VEREDITO
Ao passar mais de uma década sem um lançamento, o nome The Cure seguiu vivo através da apreciação renovada do público pelos pontos mais altos de sua carreira, com discos sendo descobertos por uma nova geração de fãs e bandas que não negam sua influência. E, para cada retalho da colcha de perdas até aqui, esses discos se fizeram presentes.
Com Songs of a Lost World, a banda expande sua relevância do legado para o presente, com um material que ecoa estes pontos mais altos. E não como mera repetição nostálgica, mas como um norte a se seguir, do jeito que as obras clássicas fazem questão de executar.