Como o Zander fez de 2021 o seu trabalho mais sincero

Em Carne Viva marca o quarto disco de estúdio da banda de rock independente

Arte: Giovanna Zancope / Downstage

Para algumas pessoas, é muito difícil desapegar do formato de álbum e tudo o que contempla o lançamento de um: a era de uma banda, um conceito, todo o material promocional e, é claro, os shows que o sucedem. Com o Zander, não é diferente: o ato de mergulhar um ano inteiro (ou até mais) em um só trabalho é algo que sempre agradou a banda de rock independente, mas assim como outros artistas, a pandemia de COVID-19 fez com que Gabriel Zander, Gabriel Arbex, Marcelo Malni e Carlos Fermentão tivessem que furar essa bolha e pensar fora da caixa.

Como uma forma de não cair no esquecimento, a banda escolheu um novo formato para seu mais novo disco, Em Carne Viva, pensando em sempre oferecer novidades para os fãs ao longo do ano e manter as letras e sonoridades atuais. Foi nessa brincadeira, no entanto, que Zander fez de 2021 um capítulo importantíssimo na história da banda, como também do quarto álbum o melhor de sua carreira.

(Imagem: Murilo Amancio)

Reunindo-se em janeiro, o Zander começou a pré-produção do trabalho numa semana bem intensa, com todos os integrantes isolados num sítio e respirando música 24 horas por dia. “Isso vai acrescentando ao longo do caminho e a gente vai criando uma narrativa, uma história que vai sendo contada em capítulos”, comenta Bil durante um bate-papo exclusivo com o Downstage. “Isso é muito foda, é uma adaptação gigante pensar de outra forma.”

“A forma de consumir e ouvir música mudou. E isso não é uma preferência minha, é uma realidade. a gente precisa aceitar, mas dentro dessa realidade, como fazer de uma forma legal?”, questiona, revelando a conclusão que o Zander chegou para o lançamento de Em Carne Viva. “Vamos lançar o álbum por singles na ordem da tracklist, porque aí a gente cria uma sensação que as pessoas estão ouvindo na ordem que a gente quis — e a gente tem a oportunidade de conversar sobre elas, isso traz a galera pra dentro do universo de cada uma.”

Para manter as composições atuais, o Zander optou por trabalhar em cada faixa mês a mês ao invés de produzir tudo de uma só vez e deixar os lançamentos distribuídos ao longo do ano. “Eu faço e duas semanas depois elas saem”, comenta. “Os assuntos vão mudando conforme o meu humor, a minha vida e as coisas que estão acontecendo ao meu redor. Não é que a gente queria que fosse assim, acaba sendo.”

A abordagem emocional no disco Em Carne Viva

Dentro de todo esse formato, há um conceito ainda mais profundo no quarto trabalho de estúdio do Zander. Sendo uma banda que sempre foi próxima de seu público e sempre procurou manter um diálogo com as pessoas que a acompanham, Bil foi para as redes sociais em 2020 e criou um espaço com os fãs seguro e de muita troca.

“As pessoas estão passando por uma parada diferente a cada lançamento”, comenta, referindo-se à maneira que cada faixa ressoa no público no momento em que é disponibilizada nas plataformas digitais. “Cada música vem num momento diferente da sua vida ali. Eu vejo que essas oscilações – e durante a pandemia a gente tá passando por várias – as músicas vão preenchendo essa rotina (ou essa falta de rotina).”

(Imagem: Murilo Amancio)

“Essa parte das letras é um capítulo à parte porque isso também foi um momento novo pra mim”, relembra Bil ao pensar em suas composições. “Eu queria que fosse uma conversa com o nosso público, [então] eu abri uma caixa de perguntas no stories e comecei a conversar com os fãs, perguntar o que eles estão sentindo, o que as pessoas estavam fazendo durante a pandemia.”

O resultado foi surpreendente e rendeu lives quase diárias no Instagram da banda, além de um grupo no Telegram com mais de 400 participantes e uma coletânea das mais sinceras letras da carreira do Zander. “Eu não esperava que fosse ser assim, foi bom porque eu percebi como o que a gente faz é importante para algumas pessoas e a gente não tem noção disso às vezes”, comenta. “eu mais um ânimo pra continuar trabalhando nesse disco, ele mostrou ser uma necessidade pra gente continuar fazendo o que a gente gosta e pra galera que nos acompanha.”

“A partir desses papos eu peguei assuntos que eu me identificava e comecei a anotar o que eu sentia em comum com essa galera, eu queria escrever um disco junto com eles, sabe?”, pontua.

Foram a partir desses relatos que surgiram faixas como Algo Que Não Machuque, que fala abertamente sobre o veganismo. “Trazer esses temas para debate foi importante, tem algumas coisas que é um simplesmente ‘tamo junto, também sinto isso e tá tudo bem’, afinal, amanhã vai ser diferente e a gente vai tentar de novo.”

Um trabalho sincero

Pensando dessa forma, Em Carne Viva cai como uma luva no disco. “Como compositor, nunca foi tão intenso nesse sentido”, comenta Bil. “Sempre fiz as músicas e achei a vida inteira que eu quero escrever algo e que você interprete, você vai ler a letra e de repente você vai tirar algo diferente do que pensei — pra mim sempre foi assim, mas em algum momento eu percebi que cara, eu acho que preciso falar exatamente sobre o que é são essas coisas e isso não vai impedir que as pessoas escutem e pensem também. A gente vai ter a oportunidade de conversar.”

Em Carne Viva é uma “ferida aberta”, como descreve Gabriel Zander. “A gente tá machucado e não tem curativo e nem ninguém pra cuidar da gente”, detalha. “Tá exposto e à mercê do tempo curar.”

Todo o conceito e parte gráfica do álbum

Não é equivocado afirmar que Em Carne Viva é um álbum feito de ciclos. Cada faixa é antecipada por um documentário da série À Mostra, incentivada pela Vans Brasil, e logo em seguida conta com o material promocional, disponibilização da música e enfim encerra-se com o clipe.

(Arte: João Lemos)

Quanto às cores, cada uma marca um single, o que faz a banda brincar com cada faixa como se fosse uma Era diferente. Quem assina toda a arte é João Lemos, que trabalhou anteriormente com o Zander em Dialeto.20 e no EP Tropical Melancolia, parceria da banda com o menores atos. Durante uma caminhada no bairro de Bil, João relembrou de um insight de um amigo em comum que revelava “que cada álbum tem uma cor.”

“Comecei a lembrar dos discos que eu gosto e associar com uma cor, aí eu contei pra ele que a ideia seria a gente fazer vários singles e seriam várias capas”, detalhou. “Depois que a gente decidiu isso, fizemos alguns testes. Quando chegamos na primeira capa [do single Em Carne Viva, um roxo] vi eu achei que tinha tudo a ver.”

As participações especiais de Em Carne Viva

Com oito faixas, o Zander possui participações especiais em seis delas. A primeira, Desalento, teve a Era marcada por um rosa vibrante e também pelos vocais de Lucas Silveira. Em seguida, a banda dividiu com o público Não Morri de Saudades, com Popoto Martins Ferreira da banda Raça. O mais recente lançamento, Algo Que Não Machuque, leva o feat de Teco Martins do Rancore.

“A solidão é o abrigo do medo” – Desalento, com Lucas Silveira (Imagem: Reprodução / Instagram)

De acordo com Bil, a vontade de trazer vozes de fora vem de muito antes, mais especificamente de Dialeto.20, com Vitin da banda Onze:20. “Foi muito legal a experiência de poder trazer alguém novo e dar uma cara diferente pra música”, relembra. “É um elemento surpresa, dá o toque dele. As músicas ganham muito com isso, você acaba apresentando isso pra outro público.”

O ânimo continuou e resultou em um dos trabalhos mais interessantes da carreira do Zander, o EP com o menores atos e agora alonga-se para Em Carne Viva. Em paralelo, Bil ainda consegue trazer uma referência disso para o período atual. “É algo que marca o que estamos vivendo hoje: você entrar em contato com as pessoas e elas estarem disponíveis”, comenta. “Cada música vinha um nome na cabeça, com muita gente a gente já tinha contato, mas outros foram amigos que surgiram durante o processo.”

“Acabou sendo uma característica desse projeto e dessa época, daqui a alguns anos quando as pessoas ouvirem esse álbum, vão lembrar que foi feito num período estranho, difícil em que não tinham shows”, comenta. “[Mas] foi desmembrado e tem muitas participações porque foi uma forma de se conectar com outros artistas de uma forma que acontecia em festivais.”

Em Carne Viva terá ao todo oito faixas, com duas ainda para serem divulgadas. O álbum chega no fim do mês a todas as plataformas digitais.