The Cigarettes exorciza antigos demônios em relançamento de Bingo

O primeiro disco da banda carioca está sendo remixado e remasterizado para uma nova edição, financiada coletivamente a partir de setembro

Arte: Rafah Antunes / Downstage

A volatilidade do tempo é imperceptível para a arte, mas não pelo artista. Beirando meio século de vida, Marcelo Colares decidiu se aventurar nas entranhas dantescas da memória, ao relançar Bingo (1997), primeiro disco do The Cigarettes, através do selo carioca Midsummer Madness, também responsável pela primeira edição do álbum.

Muita história foi escrita nesses últimos 25 anos, assim como, muitas memórias foram perdidas e esquecidas, involuntariamente ou não. E uma pequena parte dessa odisseia foi contada ao Downstage, em entrevista com Marcelo Colares, que divagou sobre o passado, e, brevemente, sobre o futuro.

Arquivo pessoal

O ano era 1997. A internet ainda era restrita às classes mais abastadas, o real se equiparava ao dólar por decimais, uma democracia muito imatura borbulhava nas esferas sociais; um outro Brasil, em uma época muito diferente. Foi nesse contexto em que Bingo foi produzido, no Estúdio Freezer, que ficava em uma galeria comercial na Praia de Botafogo, local que também abrigava alguns rolês do underground carioca.

Bingo nasceu de um artista que precisou driblar e aceitar as limitações, fossem elas pessoais ou técnicas. Colares, conta, entrou no pequeno estúdio com a ideia de gravar um disco barulhento: com guitarras altas e distorcidas e muito feedback. O oposto que seu produtor, Gustavo Seabra, queria. “Ele andava numa viagem mais clean, mais violão, guitarra limpa, e não rolou. Desentendimento sem treta, de comum acordo, mais ou menos”, comenta o vocalista Marcelo Colares, que passou a direcionar o álbum, mesmo com pouco conhecimento.

Com um prazo apertado, Colares conseguiu, com um funcionário, as chaves do estúdio, e passou a usar a mesa de som nos horários vagos. “Sei que já era maio de 1997, daí a pouco teríamos que mandar a master pra fábrica. Percebi que teria que dar meus pulos se quisesse terminar tudo em tempo. (…) Eu tinha que chegar e sair quando não tivesse ninguém por lá. Aí chegava domingo 11 da noite e saía segunda meio-dia. Eu me guiava pela agenda do estúdio e arriscava. Se aparecesse uma visita surpresa, problema” relembra Marcelo, em seu site-diário Database.fm.

O ato (de desespero) não foi autoconfiança, pelo contrário. “Eu [Marcelo Colares] fui forçado pelas circunstâncias a agir assim” E foram as lacunas, erros e imperfeições que fizeram do Bingo um disco acolhedor, como um amigo que também sofre do os apuros hiperbólicos, condizentes com a juventude. “O charme lo-fi da mixagem original permanecerá pra sempre em nossos corações”, comenta Colares. 

Influências

As principais influências para a criação de Bingo são Pavement, The Smiths, Jesus and Mary Chain, Dinousaur Jr. e Velvet Underground, mas não só. “Se você ouvir com atenção vai encontrar Legião Urbana e até mesmo Kid Abelha. Nem sempre o que influencia é aquilo que a gente elege como preferido. Tudo o que você ouve, vê e sente, durante sua vida inteira, acaba influenciando, independente da sua vontade. É assim”, explica Colares. 

Crédito: Paulo Fidelis Neto

O Bingo foi lançado em maio de 1997, com 1.000 cópias em CD — hoje, difíceis de serem encontradas no mercado. “Um disco feito por alguém que segura nas mãos o próprio coração dilacerado e sangrando. Se isso fosse possível”, definiu Marcelo. 

A arte, ao ser analisada por terceiros, pode ser dúbia e carregar diversas interpretações. Mas Bingo, para seu autor, é a materialização de experiências e anseios de sua existência. “Nada dá mais sentido à minha existência do que a música. O Bingo é a primeira cristalização dessa percepção. Acho que é o resultado de algo que eu já vinha planejando desde a infância ou do início da adolescência. Vejo como um disco de rock, que escapa um pouco de ser só indie ou alternativo.”

O que foi e o que será

Vinte e cinco anos já se passaram desde que Bingo foi lançado. E sua reedição, para Colares, é como viajar no tempo. “Te joga num espaço de muitas indagações e muita autorreflexão. Mas nada dramático ou traumático”, comenta.

“A reflexão só ocorre, se ocorre, depois. O contemporâneo é sempre labirinto, só depois é que a gente vai olhar para aquilo que viveu e talvez conseguir entender um pouco melhor”, respondeu Colares ao ser confrontado, como se estivesse em um espelho que leva diretamente ao passado. 

Sem nostalgia e com a certeza de que cada época da vida é singular, o vocalista vê o ato de se prender ao passado como um distúrbio – fato este, pelo qual resistiu celebrar os anos de existência de Bingo. “Mexer nesse disco hoje tem me proporcionado uma clareza maior de como a música foi e é importante na minha vida. Pessoas que me marcaram ao longo do caminho, amigos de décadas, namoradas que eu tive, quase tudo partiu da música, do Cigarettes e especialmente do Bingo. É um momento de insights muito esclarecedores. Por isso digo que é também terapêutico.”

Exorcizando demônios

O resultado do que será a reedição de Bingo é um exorcismo, não apenas para Colares, que agora se reconcilia com as sombras do passado. “Se haviam demônios, acho que agora já estão todos exorcizados”, diz o vocalista. 

“Apesar de ser o mesmo disco, é outro álbum. Não melhor, não pior – vai ter gente falando isso, eu mesmo falei isso internamente algumas vezes -, mas sim o resultado de um exorcismo (não de uma exumação). Exorcismo da cena, de coisas que todos passamos, de quem foi, de quem fica, de quem mudou de país, de quem não se considera mais indie, de quem vendeu as guitarras para comprar toca discos, de quem se vendeu… good or bad, happy or sad. Foda., comentou Eduardo Ramos à Colares, por e-mail. 

Arquivo pessoal

Legado

O disco, explica Colares, foi desprezado, de certa forma, por um sentimento nacionalista, muito presente à época de seu lançamento. “Se cantasse em inglês, [por] regra geral, já era visto com outros olhos. Por implicância, por incompreensão, ignorância, ou incapacidade de perceber que esse não era o ponto em questão. Hoje, sinceramente, isso não me preocupa mais. Fiz o que eu podia fazer. Não tenho que convencer ninguém de nada. A música fala por si só.”

Apesar disso, Bingo se tornou um clássico do rock independente brasileiro, que passou por duas décadas e meia sendo uma referência, sem grandes gravadoras e equipes de marketing. “O disco sobreviveu esse tempo todo por conta própria, exclusivamente por causa da música”, comenta Colares.

Vivendo uma vida impulsionada por um ideal artístico, poucas serão as coisas materiais deixadas como herança, alerta – quase que de forma mística – Colares. “Eu tenho Saturno na casa 5 do meu mapa astral, o que indica, quase que com certeza, que não deixarei nenhum legado genético, não terei filhos. Deixarei no lugar, um legado estético e isso é o que me move, o que me fascina e o que me impulsiona. Na verdade não me preocupo com mais nada além disso. Mas ‘só isso’, em si, já é uma grande pretensão”, finaliza.

Financiamento Coletivo

O projeto de relançamento de Bingo nasceu em e-mails, trocados entre Colares, Eduardo Ramos e Rodrigo Lariú, conta o frontman. “A ideia surgiu em 2017, quando o disco completou 20 anos de lançamento. Eu falei que ainda tinha as fitas e o Dú [Eduardo Ramos] se ofereceu pra remixar o disco.”

Arquivo pessoal

As fitas originais de Bingo, relembra Colares, estavam guardadas como um souvenir, dentro de um saco plástico, que sobreviveu à mudanças e à ação do tempo, como se estivessem predestinadas a um epílogo. “Nunca dei muita atenção a elas [as fitas], mas sempre me acompanharam. Não deixa de ser curioso. E olha que eu sou muito desorganizado, em excesso. O mais provável seria que eu tivesse perdido ou jogado fora numa das minhas mudanças. Mas não. Cá estamos com o disco remixado. Por algum motivo as fitas foram preservadas por 25 anos. Não me pergunte como. Providência divina talvez”, pondera o vocalista. 

A produção é encabeçada por Eduardo Ramos, responsável pela digitalização e mixagem. A remasterização será feita pelo engenheiro de som Alan Douches, que já trabalhou com nomes como Patti Smith, Sufhan Stevens e Animal Collective. Rodrigo Lariú, do selo e zine Midsummer Madness, é responsável pelos trâmites do financiamento coletivo.

O Bingo será relançado em três formatos: CD, LP e um vinil compacto – com quatro faixas que ficaram de fora da versão original do disco -, por meio de um crowdfunding, a partir de setembro de 2022. 

O Cigarettes lançou, na primeira semana de setembro, um clipe da música Annabel Lee, com a nova remixagem, feita por Ramos. O som, como explicou Colares, ainda será masterizado, mas já é possível diferenciar a fidelidade sonora da nova edição.

O clipe de Annabel Lee foi produzido pelo coletivo Avalanches Filmes. O financiamento coletivo também prevê a produção de mais três clipes, se a meta for atingida.

Planos

Após o relançamento do disco, o Cigarettes pretende fazer shows, se as condições permitirem. Colares também revela um possível novo álbum, com músicas inéditas. “Mas vou precisar esperar passar essa história do Bingo, parece impossível conciliar no momento. É questão de tempo até eu começar a botar pra fora as coisas novas”, finaliza.