Uma força da natureza chamada Rancore

Em um ano marcado por reencontros e nostalgia, Rancore retorna aos palcos em três shows imperdíveis e proporciona um “momento eterno imutável” no Oxigênio Festival 2023 e Hangar 110

Arte: Júlia Lima

Apesar de não ter tido contratos com grandes gravadoras ao longo dos anos de carreira, a banda de hardcore punk não saía da boca, dos ouvidos e até mesmo da pele dos amantes de rock brasileiro. Com apresentações sempre lotadas e músicas estouradas nas rádios e na finada MTV, era notável que Rancore lutava contra a maré que carregava o público das outras bandas independentes da época para longe das casas de show.

O grupo nasceu em São Paulo, no ano de 2001 e, apesar dos vários nomes presentes no Rancore durante toda sua trajetória, a formação mais conhecida é a que conta com Alê Iafelice (bateria), Candinho Uba (guitarra), Caggegi (baixo), Gustavo Teixeira (guitarra) e Teco Martins (vocal), responsáveis pela gravação de Seiva, um dos álbuns mais marcantes da cena underground nacional. E numa matéria pra lá de especial, o Downstage conta e celebra a história de uma das bandas mais emblemáticas do punk hardcore dos anos 2000. 

Foto: Fernando Valle

Nada é longe demais

O primeiro trabalho da banda foi Galo Insano, demo gravada de forma totalmente caseira e lançada em 2004 de forma independente. O EP teve boa repercussão e garantiu um público engajado e cativado pela paixão ardente das letras e batidas enérgicas de Rancore

Dois anos depois, lançaram Yoga, Stress e Cafeína pelo selo DaLaranjaaoCaos, garantindo uma posição de destaque entre as grandes revelações do mundo da música naquele ano, além de mostrar que o som autêntico do Rancore era capaz de bater de frente com a onda crescente do pop nas mídias tradicionais. O trabalho não só conquistou os ouvintes, como também fez com que Alê – que, até então, era baterista de outra banda – se apaixonasse por Rancore. Em entrevista concedida para o documentário Eles Ainda Acreditam (2010), que busca retratar a cena musical independente dentro do Estado de São Paulo daquela época, Alê revelou que essa colaboração foi a primeira faísca de um “fogo da paixão” da relação entre ele e o grupo. 

Ao longo das onze faixas presentes no álbum, os músicos mostram uma combinação única de elementos do punk, hardcore e rock alternativo, tocando corações e mentes de jovens (principalmente) que buscavam uma expressão genuína, narrada, desde o ínicio, pela voz marcante de Teco Martins

Foto: Lucas Piruka

Além de garantir espaço nas paradas de sucesso para Rancore, o disco fez com que a banda fosse convidada para sua primeira participação na emissora MTV. No mesmo período, acontecia a turnê de lançamento do álbum (2006 – 2007), que esteve presente como ato de abertura em shows de algumas bandas internacionais na Hangar 110, casa de grandes eventos do underground. Além de tocar em casa (São Paulo), o quinteto passou por Belo Horizonte, Brasília, Cubatão, Curitiba, Londrina, Rio de Janeiro e Santa Catarina.

Apesar da notável ascensão, Rancore ainda lutava por um lugar ao sol. Afinal, viver só de música não é pra qualquer um. Assim, em 2007, a banda deu início ao planejamento e gravação de seu segundo álbum, intitulado Liberta, concebido pelas mãos de Candinho, Teco, Alê, Marcelo Barchetta ‘Cabelêra’ (guitarra) e ‘Alemão’ André Mindelis (baixo).

Respeito é a Lei e Rancore era o momento 

Imagem: DeckDisc

Liberta foi entregue ao mundo em 2008, contando com 10 canções que repaginaram o som do grupo. O sucesso alcançado pelo novo disco foi absurdo, considerando que, apesar do apoio da cena e do público fiel, a banda ainda caminhava com as próprias pernas. Dessa forma, em um cenário musical muitas vezes tomado por tendências passageiras, Rancore foi se consolidando como um grande farol de autenticidade no rock nacional, assim como os contemporâneos Dead Fish, Dance of Days e Sugar Kane.  

Com temática que aborda causas sociais e políticas, bem como assuntos mais pessoais e introspectivos, a obra ajudou a “modelar” a banda, escancarando a inegável capacidade dos artistas em equilibrar a brutalidade dos instrumentais do punk rock com melodias e letras sensíveis, promovendo uma liberdade emocional e expressão pessoal que permeiam todo o disco. Aqui, destacam-se como exemplos as faixas Canto Gritando e Quarto Escuro, que transmitem os sentimentos depressivos e ansiosos que assombram muitos de nós.

Por esses motivos, não é equivocado afirmar que Liberta foi, com certeza, o responsável por colocar Rancore nos holofotes, descolando um contrato com a gravadora carioca Decklist, em 2010. 

O sumo de Rancore em Seiva

Imagem: DeckDisc

Seiva (2011) é o terceiro e último álbum de inéditas lançado pelo grupo. O disco possui 12 músicas e é repleto de hits que marcaram a adolescência de toda uma geração. Além de grandes sucessos como Mulher e Jeito Livre, o trabalho também conta uma colaboração incrível com Rodrigo Lima, vocalista do Dead Fish, na faixa Seleção Natural

Nessa época, a realidade de Rancore já era outra: conhecidos como a grande promessa do rock independente, a banda contava com uma certa segurança para desfrutar de novos ambientes e sonoridades. E, mesmo não abrindo mão do bom e velho punk hardcore, novas camadas passaram a ser exploradas nesta nova fase. Mantendo uma potência lírica, perfeitamente mesclada com guitarras intensas e arranjos dinâmicos, a experiência de escuta para Seiva era uma conversa entre artista e fã, demonstrando o porquê de tanta aclamação e receptividade por parte da cena brasileira. 

Após esse estouro, Rancore esteve ao lado de outras grandes bandas em festivais e premiações como, por exemplo, o VMB de 2011 e o Sampa Music Festival, dividindo palco com Fresno e Gloria. Outro grande destaque da Era Seiva foi a presença do single Mãe na trilha sonora de “Malhação”.

Hiato e, depois, #VoltaRancore

Mesmo estando num momento muito positivo em termos de reconhecimento, o Rancore decidiu encerrar suas atividades por tempo indeterminado no ano de 2014. Candinho foi para outro país, Teco decidiu se aventurar em carreira solo – e no projeto Sala Espacial, ao lado de Alê e Caggegi. Os ares mudaram, mas a paixão latente e incessável pela vontade de fazer música permanecia a mesma. 

Isso fez com que realizassem algumas reuniões de lá pra cá, com direito até mesmo a gravação de DVD e um álbum ao vivo, nomeado Rancore (Ao Vivo), que compila boa parte das queridinhas entre os fãs.

Já em 2021, durante a pandemia, o grupo presenteou seus fãs com o anúncio de uma live de comemoração aos 10 anos de Seiva. O evento foi promovido pela Vans e aconteceu na grandiosa Hangar 110, palco para um verdadeiro espetáculo apresentado pela formação completa de Rancore

Em entrevista ao portal TMDQA! para uma matéria comemorativa do lançamento do álbum, Teco explicou que a ideia da live e do reencontro da banda nasceu da situação delicada de pandemia e isolamento social que “fez todos nós refletirmos sobre a existência, sobre nossas relações e nossas histórias. […] O Rancore é algo muito relevante na vida de todos nós, acredito que falo por todos quando digo que essa banda é uma das passagens mais importantes das nossas vidas.”.

Você me chama, eu vou 

Apesar das várias reuniões calorosas ao longo dos últimos anos, o público não parecia satisfeito e o movimento #VoltaRancore nunca deixou de existir. E, atendendo ao pedido de uma legião de rockeiros, a edição 2023 do Oxigênio Festival decidiu promover o retorno de uma das bandas brasileiras mais icônicas dos últimos tempos. 

O Rancore fez duas apresentações apoteóticas na última edição do Oxigênio Festival, evento que aconteceu nos dias 26 e 27 de agosto, mostrando que a chama da banda está mais viva do que nunca. Aproveitando a energia e a catarse proporcionada pelos fãs nos dois shows que aconteceram no festival, deixando claro que Rancore ao vivo nunca é demais, a banda anunciou mais um show na capital paulista. O Rancore vai fazer um show de última hora neste domingo, 03 de setembro, no Hangar 110.

Imagem: Reprodução / Instagram

Em uma postagem em seu instagram, o vocalista Teco Martins explica o motivo da apresentação surpresa. “Os shows do fds passado no Oxigênio Festival foram os melhores shows da nossa carreira até hoje. Nunca sentimos algo tão forte assim (e olha que o que não falta pra essa banda são fortes emoções) e decidimos juntos, que antes do Candinho pegar o avião (ele viaja segunda-feira) tínhamos que fazer uma saidera, e o único lugar possível pra essa celebração seria nossa casa, o lendário HANGAR 110!”

Os ingressos começam a ser vendidos quarta-feira, 30 de agosto, no site Pixel Ticket. Não perca a oportunidade de viver a experiência de ver ao vivo uma força da natureza como o Rancore no templo do underground nacional.