Letramento Racial, gostoso demais

Não tem textão de retratação que resolve quando toda a estrutura que sustenta o ecossistema da música é intrinsecamente racista

Arte: Carol Moraes / Downstage

Por Lio Soares

O convite era pra escrever um pouco sobre como eu, enquanto mulher negra, experiencio a vida na música. Representatividade, empoderamento, diversidade são alguns dos verbetes que a gente deu conta de destroçar os significados, a profundidade do desenrolar dessas palavritas no mundo real, na vida prática. Aí em lugar desse depoimento escolhi meter um termo novo pra uso de geral.

A coisa do LETRAMENTO RACIAL. Nem vou me enrolar muito no conceito. Neide A. de Almeida vai te localizar agora:

“Este conceito remete à racialização das relações, ou seja, o estabelecimento arbitrário de direitos e lugares hierarquicamente diferentes para brancos e não-brancos, que legitima uma pretensa supremacia do branco.”

Escrevi mil historinhas sobre como eu experienciei racismo quando criança e adolescente mas acredito que a eficácia desse textão não tá no buffet de histórias de violência. Minha contribuição hoje é bem professoral. 

Vim contar o que foi o que me fez entender o que vem junto no pacote quando a gente é preta, mulher e artista.

Diferente do que a turma está acostumada a ouvir, não foram as violências que eu sofri que me contaram o segredo. Foram as trocas com outras pessoas e a prática do ESTUDO SOBRE RAÇA que me localizaram de maneira concreta no mundo, muito mais do que os prejuízos diários que eu calculo. Das delícias e dos desastres de ser mulher e negra. Minha compreensão vem do meu interesse sobre o passado e o futuro e não das feridas sobre a pele. 

(Foto: Lucca Moura Miranda)

Equipes de segurança impedindo artistas não-brancos de chegar aos palcos, artistas brancos entendendo a prática do racismo enquanto aprendizado para si, em lugar de responder criminalmente pelas violências praticadas, pelas violações da lei. Curadores, produtores dos mais desconstruídos e modernosos festivais ainda deslizando em pontos elementares – como providenciar que o artista seja capaz de chegar ao palco sem que sofra violências no caminho, por exemplo, são sem dúvida sintomas da ausência de leitura, de contexto, de informação. Pode ser intensa a vontade de provocar mudanças e tá todo mundo de parabéns quando a vontade vem. Mas a vontade sem preparo provoca violência. 

Não tem textão de retratação que resolve quando toda a estrutura que sustenta o ecossistema da música é intrinsecamente racista. Sem o domínio competente das bandeiras que levanta, das pautas que quer bancar.

No fim, o meu posfácio é uma dica óbvia: o quadrado preto e o textão com frase de efeito não tá dando conta, meu pessoal. Sem letramento-racial a carreira morre na praia, a banda separa, o coletivo é acusado, o vocalista é incriminado, o festival é flopado. E custa caro. Quer ver um bagulho baratinho black friday nesse novembrão? Letramento racial.  

Quando a gente tá aprendendo a ler, juntar uma letra na outra ainda é parto do processo que é saber a língua. Mas saber a língua só acontece no domínio competente da leitura e da escrita. Pois é o letramento racial, essa prática consciente de reversão da lógica racista, o que desenrola o uso do que a gente já aprendeu sobre racismo. Repetir frase não é saber a língua. Pra falar fluente tem que passar a fase de juntar letra na outra e acreditar que é o bastante.